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A (des) confiança no artigo 4

A Confiança é a palavra-chave para que uma Democracia funcione em pleno, mas quando começamos a desconfiar que a Liberdade de expressão pode estar a funcionar de forma coxa, por ser alvo de espionagem, então tudo muda, desde logo, a nossa perceção sobre os valores e princípios que norteiam o sistema que escolhemos livremente para viver. O que se está a passar no Parlamento europeu e na Comissão em torno da nova Lei europeia dos Media é motivo para nos preocupar e deve merecer, no mínimo, o repúdio de uma das classes mais desprotegidas, económica e politicamente falando. Há muito tempo que a desqualificação das condições de vida da maior parte dos jornalistas e a ausência forçada da memória das redações, é motivo de preocupação acrescida, mas agora ficamos com a certeza de que países, baluartes da Liberdade de expressão, claudicaram, como a França, perante a possibilidade de os Estados poderem vigiar a atividade dos media e as suas fontes. Cai por terra, a continuarmos nesta tendência, a esperança de vermos fortalecidas as fundações da Europa, pensada e criada pós-guerra. Não é só a França que está em xeque ao exigir uma exceção quando a Lei, em discussão desde meados de Setembro passado, começou a ser negociada para, alegadamente, proteger os jornalistas e os media de controlo indevido. O regime de exceção, defendido, igualmente, por Espanha, Alemanha, Grécia, Polónia e Hungria, é o mais vil ataque perpetrado contra a Confiança. As plataformas de investigação jornalística como Investigate Europe, netzpolitik.org e Follow the Money, denunciaram esta situação, tal como os autores do relatório anual Media Pluralism Monitor do Instituto Universitário Europeu de Florença. Em Portugal, classificado como de risco médio neste documento, os jornalistas já foram espiados a mando de uma juíza e ficou a saber-se, agora, que programas de espionagem semelhantes ao Pegasus, foram utilizados ao longo dos últimos anos no nosso país. A notícia sobre este atentado à Liberdade de Expressão, publicado há dias, não mereceu a reação que se esperava, nem dos visados, nem da Procuradoria da República, nem dos partidos, nem do governo e muito menos da presidência da República. Ou há resignação e aceitação, ou então não se percebe a ausência de reação. O estudo sobre as circunstâncias, causas e consequências coloca o nosso país no limbo. Atente-se aos números que o Público revelou ontem sobre o assunto e que, no mínimo, são contraditórios com os receios enunciados na denúncia sobre a espionagem em Portugal: “risco baixo “nos domínios da Proteção Fundamental (23%) e Independência Política (20%)” e um risco médio “nos domínios da Pluralidade do Mercado (56%) e da Inclusão Social (59%)”. São números contraditórios a precisarem de uma depuração para se perceber como temos, perante a independência política, um risco tão baixo, quanto todos sabemos que não é assim e porque é que se reduz o impacto no domínio da proteção fundamental quando na verdade é por aqui, que esta intenção de excecionalidade, põe em causa o Estado de Direito. O projeto da Comissão Europeia está cheio de boas intenções na defesa do jornalismo, proíbe “medidas coercivas contra os jornalistas para que revelem as suas fontes, tal como a monitorização das suas comunicações e a utilização de software-espião nos seus computadores e telefones”, mas é, como se percebeu, uma intenção que se fica pela lei, sem consequências. O abuso tem as portas abertas caso se avance para o regime de excecionalidade e ao que parece, há concordância nas principais famílias políticas europeias, para se avançar para a primazia da alegada Segurança nacional. Na ausência de uma reação concertada dos órgãos de comunicação social e do poder político, resta aos cidadãos fazerem o seu papel: exigir que esta lei europeia seja debatida amplamente pela sociedade civil e que se avance, apenas, após esta consulta e se estiverem salvaguardados os direitos fundamentais e o controlo rigoroso sobre a definição do que é Segurança Nacional. Se assim não for, elimine-se o artigo 4.

 

Paulo Sousa

Paulo Sousa

18 junho 2023