1. No anterior artigo, aludimos ao livro “As Quatro Guerras de Putin” (2020), do académico russo Sergeï Medvedev, exilado, onde mostra como o regime totalitário de Putin se define pelas marcas dos dois grandes totalitarismos do século XX – o nazismo e o estalinismo –, mas sem o respaldo duma ideologia, portanto sem uma visão global orientadora da política interna e externa (como o “marxismo-leninismo” na antiga União Soviética). É isso uma ideologia: um conjunto de ideias e doutrinas que estabelecem uma visão do mundo, susceptível de englobar uma criteriologia do bem e do mal, visando justificar sistemas e planos de acção políticos com vista a justificá-los e normalizá-los, diluindo tensões e conflitos sociais, contribuindo para a manutenção dum determinado sistema político (por ex., liberalismo, marxismo-leninismo, etc.).
A estratégia de Putin é aí apresentada, tal como o fizera o fascismo, como uma luta contra a decadência ocidental, contra a sedução do materialismo, contra a feminização e perda de virilidade da sociedade, contra a dissolução dos laços tradicionais; em suma, contra o “não-russo”, corpo estranho que mina a “alma russa”. Assistimos, pois, ao surgimento dum novo tipo de fascismo, não como os do século XX (ligados a uma ideologia), embora colha elementos do estalinismo e do nazismo para se perpetuar no tempo – um “fascismo pós-moderno –, cujo escopo, para Sergeï, é reerguer o antigo Império Russo Czarista, ao que Putin não olha a meios, reconstruindo, durante 20 anos, um Estado totalitário, herdeiro da União Soviética, "que esmagou os rebentos da democracia" surgida a partir de 1991.
2. Se não há grande controvérsia de que há fascismo na Rússia, o debate desponta ao recorrer-se à denominação de “pós-moderno” – como um leitor e amigo me questionou. A “pós-modernidade” foi desenvolvida desde o final da década de 1970, ocupando então a cena dos debates, protagonizada por Jean François Lyotard, Gianni Vattimo, Richard Rorty e Fredric Jameson (para me ater aos principais expoentes). Trata-se duma corrente que rompeu com as exigências da Razão defendidas nas Luzes, que foi o sustentáculo das grandes ideologias, com as quais se pretendeu romper; é, portanto, um adeus ao Iluminismo, que apontava para valores que tenderiam a universalizar-se (liberdade, igualdade, solidariedade, tolerância, etc.)”. É o próprio Lyotard que salienta no seu livro A Condição Pós-Moderna (1979), logo na 2ª página: "considera-se que o “pós-moderno” é a incredulidade em relação às metanarrativas"; ora, uma ideologia é isso mesmo, uma “grande narrativa”, uma visão do mundo”.
Não significa isso que Putin, ou os seus conselheiros, percebam de “pós-modernismo”, mas é uma tendência que se manifesta sempre que faltam razões que justifiquem certa conduta ou posição. Ora, Putin impôs arbitrariamente os supostos interesses do momento que pudessem estribar as suas ambições, que, ultimamente, convergem para a conquista de território em ordem ao restabelecimento do antigo Império Russo, ou dum novo arremedo da União Soviética. Daí que hoje seja fulcral a vitória da Ucrânia, pois, se Putin obtiver uma parte do território da Ucrânia (como Estaline na Finlândia), será uma derrota para os Estados Unidos e o Ocidente; na Ásia, na China, ou noutras latitudes, concluir-se-á que se pode agir como Putin. É por isso que o momento actual lembra o período 1941-1945, em termos de periculosidade.
3. Tem-se alegado também que a ambição imperial de Putin surgiu do ressentimento, pois, pelo menos durante 20 anos, o Kremlin repetiu à saciedade que a Rússia havia sido humilhada, que se invadira o seu espaço de interesses, opondo-se por isso ao Ocidente. A teoria da humilhação, que justificaria a posteriori as agressões da Rússia contra os seus vizinhos, não tem qualquer sentido e é infirmada pelos factos. No que à economia diz respeito, Alain Frachon notou em artigo no quotidiano Le Monde, que os ocidentais ajudaram amplamente a Rússia, e que, após o colapso da União Soviética, esperavam ancorá-la ao campo ocidental: não somente abriram as portas do FMI em 1992 e as do Banco Mundial, como permitiram à Rússia contrair empréstimos de vários biliões de dólares; ademais, Moscovo aderiu também ao Conselho da Europa em 1996 e, um ano depois, ao G7 (G8, a partir de então); aliás, em 1998, Washington apoiou a Rússia em época de grave crise do rublo e, depois dos golpes de Putin na Geórgia (2008) e na Crimeia (2014), o Ocidente ainda continuou a dialogar e a oferecer parcerias com o Kremlin, na esperança de abonançar Putin. Em suma, não foi o Ocidente, foi a Rússia que não encontrou o seu lugar na Europa no pós-Guerra Fria; ao erigir um modelo político cada vez mais autoritário, baseado na repressão, apodando o modelo democrático como um inimigo a abater (o que sistematicamente tem feito, por ex., pelo cibercrime, em eleições no Ocidente), é a Rússia que tem sob ameaça os seus vizinhos.