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O “Zé Povinho” nos jardins do Palácio de Belém

Um grupo de três artistas (Carlos Oliveira e a dupla Dalibu Ninjas) decidiu colocar junto ao palácio de Belém o “manguito”, inspirado na figura do “Zé Povinho” de Bordalo Pinheiro e que o Presidente Marcelo resolveu mandar colocar a peça artística nos jardins do Palácio. 

Ao jornal Público, edição de 4 de abril, o escultor e ceramista, Carlos Oliveira explicou o sentido da peça: “queremos que este nosso propósito sirva o momento em que vivemos de descontentamento popular em relação ao desgoverno, à hipocrisia e à corrupção.”. A favor da verdade, da democracia, da justiça e da paz”. O “manguito é a representação da voz popular de quem sofre com as decisões políticas”. Esta sumária explicação, merece uma mais ampla indagação sobre o significado do “Zé Povinho”, no contexto social em que surgiu.
 Assim, para melhor compreensão da crítica de Bordalo Pinheiro, convém recordar a vida política e social da época.

Os antigos partidos liberais eram em geral partidos de quadros, constituídos pelos “notáveis”

ou “caciques” de cada localidade e região que punham a sua influência ao serviço do partido. 

O eleitor dava o seu voto ao “cacique” em troca de obter benefícios para si e sua família, como 

por exemplo, obter emprego, livrar os filhos do serviço militar etc. Era uma espécie de “feudalismo

político”, porquanto a vida partidária não assentava tanto numa comunhão ideológica, mas numa 

“fidelidade pessoal”, reforçada por “solidariedade de interesses”. A luta pelo poder, aproveitando

todos os pretextos, transformava a vida política numa permanente guerra civil.

No plano social e cívico, o povo luso da época, na sua esmagadora maioria, era um povo analfabeto,

Ignorante, falho de espírito crítico e suportando com paciência todos os desmandos dos que

mandavam nele, resignado ante tudo e todos e só muito ocasionalmente explodia. Porém, num desses

momentos de cólera, os Portugueses acabaram por fazer o “manguito”, gesto obsceno, feito com os

braços, significando, antes de mais, um “Não”. Esse “Não” tem o significado de uma recusa agressiva 

a tudo aquilo que o atormenta e carrega. Espancado pela polícia, tributado pela fiscalidade e sempre 

desprezado pelos políticos, considerados na altura como “gente matreira e desleal que só apaparica

o “Zezinho” quando se trata de lhe extorquir o voto, após o que o enxota a pontapés no traseiro”.

A encarnação lorpa e boçal do “Zé Povinho” não é só uma figura qualquer para despertar o riso 

e a gargalhada das multidões. Ele personifica também uma sociedade aviltada pela opressão dos 

grandes e dos poderosos. Para os seus contemporâneos, Rafael Bordalo Pinheiro era acima de tudo 

um resistente muito especial contra a realeza. Embora não fosse filiado do Partido Republicano, 

Rafael dera-lhe, de facto, uma dedicada e vigorosa ajuda no combate jornalístico, pelo lápis e pela

caricatura, contra as práticas e o sistema monárquico.

Importa recordar as palavras de Ramalho Ortigão respeitantes ao “Zé Povinho”, as quais, atento 

o circunstancionalismo político, económico e social de hoje, mantêm plena atualidade, justificando a peça artística em análise.

“Um dia, talvez ele mude de figura e também de nome para, em vez de se chamar “Zé Povinho”, se venha 

a denominar simplesmente “Povo”. Entretanto, novos impostos, novos discursos e novas promessas

correrão na ampulheta do tempo, antes que chegue esse “dia tempestuoso”.

Com a Revolução de Abril de 1974, pensou-se que, finalmente, esse “dia tempestuoso”, a que se refere Ramalho Ortigão, tinha chegado para lhe mudar o nome, passando então a chamar-se simplesmente “Povo”. Mas, o agravamento das condições económicas e sociais em que vivem muitos portugueses, fruto de uma incompetência política de muitos anos; uma democracia em decadência, minada pela corrupção nos altos cargos da administração e da política, bem como uma promiscuidade corrupta entre um certo poder político, económico e financeiro, (como evidenciam os múltiplos processos pendentes na justiça) leva-nos a concluir que afinal esse dia ainda não chegou, sendo pertinente recordar o “Zé Povinho” em tudo aquilo que ele possa representar na atualidade, já que os Portugueses, neste momento, são um povo cansado e deprimido, pelo que deve tomar nas suas mãos o seu próprio destino. Povo chamamos nós àquele que manda, porque o Povo, para o ser, há-de ser soberano..

Narciso Machado

Narciso Machado

12 abril 2023