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OS DIAS DA SEMANA “O primeiro poema”, de José Miguel Braga

“O primeiro poema”, texto que abre o livro Bons Desejos (1), de José Miguel Braga, é uma jubilosa homenagem a esse momento fundador em que um dom – um singular destino intuído – se apresenta e se transforma em um novo olhar.
Escrevendo sobre as dádivas que a vida proporciona – e a que é necessário renunciar se se quiser ser bem sucedido socialmente –, Sophia de Mello Breyner Andresen explica, em Contos Exemplares (2), que “a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias” e que “o amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais”. Mas “a poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é  irreversível”.

Tão rara oferenda é devidamente saudada no primeiro texto de Bons Desejos. “Devemos guardar os primeiros poemas e de vez em quando cuidar deles como fazemos com alguns objectos a que nos afeiçoamos”, escreve o narrador de “O primeiro poema”, assinalando a comoção que assoma perante “os papéis” que guardam “no sabor das memórias o perfume da criação”.

Para reviver, há igualmente um lugar: “Sim, foi aqui que tudo começou, Aqui, onde estou sentado a ouvir a noite, com a estranha sensação de ter um mundo por meu. Nesta altura, já se ouvem as primeiras vozes e depois um coro, o efeito de uma partita cantada a várias vozes, perdida no volume secreto da ogiva, Sim, é agora que tudo começa outra vez, apesar do cansaço e de a voz me começar a doer por dentro”. Ao narrador, pouco depois, “as vozes de há pouco” parecem-lhe “afinal cantores que se afastavam na estrada” e considera-se como “apenas o excesso de uma mente branca onde tudo passava e se ouvia como a promessa de um texto a escrever-se”.

“O primeiro poema” é a celebração de uma voz misteriosa. Inesperada: “Subitamente fico com a impressão de ter ouvido uma voz a chamar-me”. E, simultaneamente, prenunciada: “Há fortes possibilidades de que em mim já estivesse a suspeita ou pelo menos a possibilidade de ser chamado por alguém”.

Uma voz que outra voz interpela: “Alguém nos pergunta pelo que somos e quer saber o que fizemos do nosso corpo e se ainda temos a alma ou a entregámos a alguém ou a alguma coisa”. A resposta tem de ser a fidelidade, uma exigência da poesia – “esta fidelidade ao meu destino”, declara um verso de Jorge de Sena (3).

O texto inaugural de Bons Desejos perscruta a natureza da própria voz, interrogando, por exemplo: “Que efeito pode ter a nossa voz sobre o entendimento dos outros?” A dúvida não perturba uma certeza. “Um dia quisemos ouvir a nossa voz entre o inebriado fulgor da festa, alguns acordes de um piano e o silêncio breve dos amigos”. Dessa experiência, nasceu “um sabor amargo ou talvez um aviso, cujo sentido tenho ainda dificuldade em compreender totalmente”.

São múltiplas as reflexões sobre a natureza da voz que se encontram em “O primeiro poema”. Através delas retomam-se as dúvidas fundamentais sobre a poesia. Sobre que corpo se faz voz – “aquele pequeno texto era o meu corpo”, diz o narrador. Sobre a incisão da luz. Sobre o silêncio: “Pela primeira vez a minha voz sofria de calar-se”, conta o narrador, acrescentando: “Eu esmorecia por um desejo de música, por uma voz que viesse anunciar a revelação do lugar onde me encontro”.

“Nem sempre era possível habitar sozinho o poema”, compreende o narrador de “O primeiro poema” que, nas primeiras linhas, evocou o “soberano bem”, tema que merecera a atenção de Blaise Pascal. Para o pensador francês, a felicidade universal, por que todos anseiam, não deve estar “em nenhuma das coisas particulares que não podem ser possuídas por um só e que, sendo partilhadas, afligem mais os seus possuidores pelas faltas da parte que não têm do que os contenta com o gozo do que lhes pertence” (4). Explicava Pascal que “o verdadeiro bem deveria ser tal que todos pudessem possuí-lo ao mesmo tempo, sem diminuição e sem inveja e que ninguém pudesse perdê-lo contra a sua vontade”.

Talvez a poesia, se for possível uma apropriação das palavras de Jacques Derrida, que também escreveu sobre o “soberano bem”, possa ser a “partilha do impartilhável” e a “divisão do indivisível” (5). Ou, como pretende o narrador de “O primeiro poema”, uma habitação repartida. Bons Desejos, de José Miguel Braga.

 

 

 

 


(1) Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2022

(2) Lisboa: Portugália Editora, 1970 (9.ª edição)

(3) “Fidelidade”, in Trinta Anos de Poesia. Lisboa: Edições 70, 1984 (2.ª edição)

(4) Pensamentos. Lisboa: Relógio d’Água, 2019

(5) O Soberano Bem. Coimbra: Palimage, 2004

Eduardo Jorge Madureira Lopes

Eduardo Jorge Madureira Lopes

2 abril 2023