O medo entrou na nossa vida. Vivemos estes dias com medo. «O medo por estarmos num território desconhecido», considera o sociólogo Esser Jorge Silva, acrescentando que «a vida em segurança do mundo ocidental gerou também um estado de vulnerabilidade». O coronavírus entrou na nossa vida e, com ele, muitos imperativos e consequências.
Diário do Minho (DM): Enquanto cientista social, como avalia o impacto deste novo Coronavírus nos sentidos do humano?
Esser Jorge Silva (EJS): Nesse aspeto, sem dúvida que estamos perante a rápida introdução de um fenómeno feroz, global, com rápida capacidade multiplicadora, sem cura imediata e, em alguns casos, mortal. Os dinamarqueses escolheram a expressão “território desconhecido” para classificar a presença desta estirpe viral. Sob este ponto de vista é, sem dúvida, um inimigo mais temível do que o recente H5N1, conhecida por “Gripe das Aves”. Esta, apesar de altamente mortal, curiosamente, não teve as consequências, em termos contaminação, que os media foram antecipando.
DM: Se pensarmos que em 2009 tivemos a “Gripe Suína”, parece que os nossos receios já não são as guerras, mas o que a biologia nos traz de surpresa.
EJS: É uma perspetiva interessante. Aliás, tal como agora, a gripe suína ou “gripe A”, foi também elevada à categoria de pandemia. Se a isso juntarmos as mortes de pessoas infetadas com a bactéria E.coli, as vacas loucas e a recente constatação de que o uso exagerado de antibióticos criou resistências, compreendemos o quanto expostos estamos aos fatores biológicos. Ora, para além das consequências mais drásticas, como as vítimas mortais, há uma decorrência alargada que se instala: o medo. Por estes dias entrei numa sala de aulas e constatei que os alunos estavam apavorados. Profundamente apavorados.
DM: E esse pavor não é compreensível?
EJS: Não esperava algum do pânico a que temos assistido. Aos meus alunos expliquei que se vivessem em África estariam expostos a doenças como a malária e a cólera ou o ébola, ou se vivessem no Brasil, se preocupariam com picadas de mosquitos e a transmissão do vírus zika. No meu pensar isso levá-los-ia a compreender que há povos que vivem com riscos biológicos muito presentes. Mas eles não quiseram saber nada disso. Havia um medo de morte ali instalado. O que me leva a constatar que a vida em segurança do mundo ocidental gerou também um estado de vulnerabilidade.
DM: O comportamento das pessoas é uma componente essencial, mas é possível esperar serenidade?
EJS: Olhamos para as prateleiras dos hipermercados e vemos que as pessoas entraram em emergência ou em pânico. Levam conservas como se de ração de combate se tratasse. Açambarcam comidas rápidas como se estivessem perante o apocalipse. No esgotado papel higiénico é a civilização do descartável que os acompanha. Parece que vão para um bunker. É como se se preparassem para uma guerra contra um inimigo invisível. Na verdade, tudo isto revela não só uma grande fragilidade como uma profunda solidão do indivíduo. Uma espécie de abandono. De repente, num mundo d tanto conhecimento, estamos a ser dominados pelo desconhecido. Neste quadro, os atos de sobrevivência devem ser compreendidos, mas é preciso interpretar também o isolamento e o egocentrismo a que os indivíduos se remetem.
DM: Num primeiro momento, o ir para a praia ou para os centros comerciais também se encerra nessa perspetiva egocêntrica?
EJS: É uma demonstração dessa perspetiva egocêntrica. A exigência é no sentido e proteção do “Outro”, mas a primeira resposta é a satisfação do próprio. Vai no mesmo sentido dos açambarcamentos; satisfaço-me e o resto que se lixe. Há aqui um traço revelador do que verdadeiramente somos quando nos é solicitado sermos uns para os outros. Entretanto, todos elogiam o caso do milagre conseguido por Macau cujos indivíduos tudo fizeram para isolar o vírus. A abnegação é admirável, mas fica muito bem aos outros. Temos uma espécie de demonstração em que as consequências de um vírus não são só a morte de infetados, mas a revelação da perda dos mecanismos de solidariedade que caracterizaram as sociedades modernas. Em simultâneo, admira-se aqueles que ainda possuem mecanismos de solidariedade e agem em respeito comunitário. A aparente contradição desta avaliação diz-nos que as pessoas percebem que estão em perda. Percebem que lhes falta algo que gostavam de ter. Ligação entre si, talvez.
DM: Isso quer dizer que o Covid-19 pode ser visto como uma espécie de punição?
EJS: Não. Quer tão pouco dizer que agimos, durante muito tempo, desligados da noção de consequências. Vemos isso na forma como as novas gerações olham para o clima. De repente, percebemos que a tragédia tem algo de nós mesmos. Desafortunadamente e despreocupadamente construímo-la. As resistências das bactérias ou as novas produções biológicas são também produtos nossos. Os monstros por nós construídos são assim os nossos monstros. Damos-lhes forma e conteúdo e depois assustámo-nos com a extraordinária capacidade com que se apresentam. E nos destroem.
DM: Este coronavírus já demonstra ser uma ameaça à escala global. Há algum exemplo idêntico na história?
EJS: É preciso não esquecer que, ciclicamente, a Europa tem sido vítima de fenómenos virais muito devastadores. Desde a Peste Negra na Idade Média que, estima-se, matou um terço da população no século XIV, até à “Pneumónica” que, entre 1918 e 1919, dizimou entre 50 a 100 milhões de pessoas, a população europeia é posta em prova. Em Portugal, refere-se a morte de cerca de 150 mil pessoas. Uma vez que a população estava estimada em 6 milhões de habitantes, estamos a falar de 22 indivíduos por mil habitantes. Uma calamidade. Da “Pneumónica”, também conhecida por “Gripe Espanhola”, ficou uma longa e profunda memória de insegurança que, em alguns casos, levou, em certas situações, a alguma insanidade coletiva.
DM: Quais foram essas situações?
EJS: Admite-se que a histeria levou a que alguns indivíduos fossem enterrados vivos em valas comuns. Os vivos acabaram por ter medo do efeito visível e direto da ação do vírus. Os jornais da época relatam a queima de eucalipto pelas ruas das cidades e a fuga para pontos altos em busca de bons ares. Instituiu-se o medo de todos os que fossem acometidos pela “Pneumónica” ao ponto de estarem preparados carros de bois que, imediatamente, carregavam quem estivesse desfalecido numa qualquer berma. Eram corpos e mais corpos atirados indiscriminadamente para valas comuns, cobertos com cale hidráulica
DM: Uma irracionalidade coletiva, portanto. Mas no caso atual não é possível imaginar um quadro desses.
EJS: Felizmente que não. A noção de responsabilidade é hoje muito maior e, pelos vistos, a irracionalidade revela-se mais em atos do género “esse problema não é meu, mas sim de quem o tem”. Como já disse, este pensamento foi imediatamente denunciado e os seus patronos arredaram pé. Por outro lado, as autoridades decidiram não ter contemplações, impondo-se imediatamente a todo e qualquer ato de desobediência. Dito de outro modo, a irracionalidade que no século passado se dava na eliminação das vítimas do vírus foi substituída, em certa medida, pela irracionalidade dos que se marimbaram para a multiplicação. Neste caso, o medo foi trocado pela banalidade.
DM: Há alguma estimativa do que pode realmente ocorrer com o Covid-19?
EJS: Se há, evita-se falar nela. Por outro lado, faz sentido que nem se aluda a tal facto. Por uma razão simples: as autoridades esperam colaboração das pessoas para travar a propagação. O comportamento das pessoas é um componente essencial para minorar os efeitos e debelar este vírus. Temos que ser todos um e saber obedecer, sem concessões, à voz de comando que dita as regras. Se tal ocorrer, menos pessoas serão contaminadas. Se as pessoas persistirem em comportamentos egoístas e egocentradas há que esperar não só um elevado número de contaminados, como um não menos elevado número de vítimas mortais.
DM: O avanço de casos de pessoas contaminadas pode levar à decisão de quem salvar e quem deixar soçobrar?
EJS: A questão é que se não ocorrer um fenómeno favorável; o que ninguém vislumbra, já percebemos todos que um número elevado de pessoas será infetada. Os apelos que se têm sido feitos vão no sentido de trabalhar para que um grande número de infetados não ocorra em simultâneo. Evitando-se uma concentração de casos, o Sistema Nacional de Saúde terá hipótese de acorrer a todos. Se, por outro lado, nos descurarmos das nossas
responsabilidades individuais, estaremos a agir no sentido de uma contaminação rápida de muitos indivíduos. Nesse caso, acontecerá o que está a ocorrer em Itália. Não só deixará de haver capacidade de resposta dos serviços de saúde como estes se verão na necessidade de decidir, no momento, os casos a salvar e os casos a deixar soçobrar. Isto é, médicos terão de fazer de Deus.
DM: Isolar-se e preocupar-se também com o outro passou a ser um, efetivo, imperativo?
EJS: Claro que sim. Na quinta-feira passada, várias pessoas de Felgueiras decidiram rumar aos shoppings de Guimarães. Uma vez que muitos empresários de Lousada e Felgueiras estiveram em Itália, esse tipo de atitude é irresponsável. Trata-se de agir no sentido de conter, geograficamente, os contaminados. A responsabilidade individual e a preocupação com o “Outro” é essencial. Isso implica também consciência no caso de suspeita de possível contaminação. Nesse caso, cabe à pessoa isolar-se imediatamente. Não há aqui duas hipóteses; é um imperativo. A outra circunstância tem a ver com pessoas com idades elevadas ou indivíduos com insuficiências na saúde. Neste caso, não se pode arriscar. Pura e simplesmente devem manter-se resguardados em casa. Assim, diminuem as probabilidades de contaminação, o que nos seus casos pode ser fatal.
[Notícia completa na edição impressa do Diário do Minho]
Autor: Rui de Lemos
Coronavírus revela uma grande fragilidade e a profunda solidão do indivíduo

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Publicado em 16 de março de 2020, às 11:58