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Crónica dos Reis Ausentes

O assunto tem merecido abordagens diversas nos media, mas, atendendo à sua relevância, nunca é por de mais revisitá-lo.

No meu caso pessoal, atento à minha condição de estudioso de história política, mais se me afigura pertinente insistir na temática.

Claro, eu sei, o leitor não está interessado nos dilemas de historiadores, antes nos temas que nos envolvem no presente. Vamos, pois, ao assunto.

Recentemente, com o paradoxal empenho do PSD na condição de primeiro proponente, os deputados da Assembleia da República decidiram aprovar um novo regimento parlamentar, que redefine o calendário das visitas obrigatórias do primeiro-ministro à mesma Assembleia para prestar contas da ação do governo. Até agora, o primeiro-ministro português estava vinculado – desde há uns anos a esta parte, conforme alteração regimental efetuada de sentido contrário à ora observada – a comparecer quinzenalmente no Parlamento para defender ou esclarecer a ação do seu governo perante as questões dos deputados, mormente, supunha-se, os da oposição. Doravante, sabemo-lo já, o mesmo primeiro-ministro só está obrigado a comparecer no Parlamento de dois em dois meses, afora uma ou outra condição ou ocasião excecional (mas, condescendamos, porque não, ao menos, a obrigatoriedade de uma visita mensal?). Trata-se de uma mudança estrutural, ou quase, na nossa democracia!

Durante a Primeira República, marcada pela efemeridade governativa (45 governos em menos de dezasseis anos de regime), a obrigatoriedade quase permanente de os governantes prestarem contas no Parlamento foi visada por muitos como fonte de inércia para a sua conveniente ação, pois os ministros ou o primeiro-ministro “perdiam” no Parlamento tempo em excesso, que lhes escasseava para se debruçarem sobre os dossiês governativos. Era verdadeiramente uma “democracia parlamentar” que, mesmo depois da transferência do Parlamento para o Presidente da República de algum acrescento de poder numa reforma constitucional de 1919, os mais detratores, com uma ironia ácida, preferiam então qualificar como “uma democracia para lamentar”.

Sabemo-lo ainda: a atual República Portuguesa consubstancia-se num regime que podemos qualificar entre o semiparlamentar e o semipresidencial. Aparentemente rendidos à necessidade de aprimorar e precisar o perfil do regime, uma maioria de deputados do “bloco central” deliberou, pois, presentear o primeiro-ministro com o direito a mais horas de descanso.

Mas não é assim na Europa das democracias consolidadas, a começar pelo Reino Unido, precursor nas liberdades públicas. Todos nos lembramos das dificuldades do(s) governo(s) desse país para conseguir a chancela do Parlamento nacional relativamente às linhas mestras de um acordo para o designado brexit com a UE. Pois, a democracia inglesa é, de facto, uma democracia parlamentar, na qual os deputados assumem particular responsabilidade para com os eleitores diretos na esperada fiscalização da ação do executivo. A eleição dos “comuns” para o Parlamento britânico, em pleno por círculos uninominais, pode até viciar a representatividade dos deputados, concedamos, dada a marginalização ou proscrição de partidos relevantes que propicia.

No nosso caso, um Parlamento preenchido com uma percentagem de círculos uninominais a par de círculos mais alargados como os que temos em Portugal ou através de um círculo nacional seria decerto um Parlamento mais brioso ou cioso das suas tradicionais prerrogativas. Com brio, a altivez e o pundonor necessários, uma quase trintena de deputados do PS, uma mão cheia de deputados do PSD e ainda, naturalmente, todos os demais pequenos e médios partidos votaram contra esta reforma do regime do Parlamento.

Quanto à motivação de Rui Rio para esta estranha iniciativa, para lá das justificações que apresentou (“o primeiro-ministro tem de trabalhar”), podemos ainda entrever o seu secreto desejo de não ser tantas vezes sujeito a KO parlamentar nas interpelações quinzenais, perante um primeiro-ministro mais rodado no metier. Ainda quanto às motivações dos deputados que viabilizaram a sua menorização na função, e o atrofiamento do parlamentarismo da República, a despeito das justificações apresentadas, em parte coincidentes com as de Rui Rio, não podemos ignorar que a maioria se entenderá como benevolamente endossada no lugar pelo respetivo chefe partidário, que poderia ficar desagradado com tamanha rebeldia e ingratidão. E depois, numa próxima eleição, haveria lugar na lista? Talvez o leitor, se vota no círculo de Braga como eu, gostasse de saber, de forma bem clara e publicitada, como votaram os nossos deputados. Será que todos estes deputados eleitos que votaram a favor deste “eclipse parlamentar voluntário” estarão dispostos a alardear os fundamentos do respetivo voto nesta questão?...

Finalizemos, para não o exasperar, caro leitor. Nada é definitivo, sabemos. Mas se o atual regime de vigilância parlamentar da ação governativa (em modo brando) perdurar, não se espante se no futuro, face à míngua e imprestabilidade dos debates parlamentares, algum historiador mais criativo vier a intitular algum estudo ou dissertação assente nos debates parlamentares como “Crónica dos Reis Ausentes” ou então ”Divagações em Tom Menor”. No entretanto, sempre, “Viva a República!”


Autor: Amadeu J. C. Sousa
DM

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8 agosto 2020