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Os santos mártires de Marrocos: no oitavo centenário do seu martírio

Rezam as crónicas que, no Pentecostes de 1219, S. Francisco de Assis enviou os primeiros missionários da recém formada Ordem dos Frades Menores a evangelizar as terras marroquinas. De seus nomes Berardo, Otão, Pedro, Acúrsio e Adjuto, eram todos naturais de Narni, Itália.

Partindo de Assis e passando por Coimbra, onde foram recebidos pela Rainha D. Urraca, esposa de D. Afonso II, e visitaram o Mosteiro de Santa Cruz, conhecendo aí o Cónego Regrante Fernando de Bulhões (futuro S. António), rumaram de seguida a Sevilha, então capital do reino mouro peninsular, onde destemidamente e com um inusitado proselitismo começaram a pregar a fé cristã nas mesquitas e praças públicas, o que lhes valeu a prisão e, posteriormente, a transferência, a seu pedido, para Marrocos, com a condição de não voltarem a pregar o nome de Cristo.

Porém, ali chegados, várias vezes reincidiram na missão de evangelização que lhes havia sido cometida, pelo que foram de novo presos e cruelmente torturados e, finalmente, decapitados em Marraquexe, a 16 de Janeiro de 1220.

Os seus restos mortais (relíquias) foram trazidos para Portugal pelo Infante D. Pedro, irmão de D. Afonso II, que ao tempo vivia em Marrocos e levados para aquele Mosteiro de Santa Cruz, onde repousam.

Deveras impressionado com o exemplo destes seus conhecidos mártires franciscanos, o monge Fernando de Bulhões decidiu seguir-lhes as pisadas e ingressar na Ordem dos Frades Menores, passando para o coninbricense Convento de Sto. António dos Olivais e fazendo-se missionário.

Quando a diocese de Coimbra vive, durante o corrente ano, um jubileu convocado pelo Papa Francisco a pedido do Bispo diocesano, justamente para a celebração dos 800 anos do martírio daqueles frades e da importância deste facto na vocação de S. António, julgo ser importante para toda a comunidade nacional, cristã e não cristã, analisar a repercussão religiosa e histórico-cultural que tais acontecimentos tiveram em Portugal, na Europa e no mundo e o desafio que o mesmo representa, no presente, à nova evangelização e à renovação da Igreja e da cultura que deve pautar as relações ecuménicas e interreligiosas.

A primeira consequência da ligação a Portugal dos Santos Mártires de Marrocos, canonizados em 1481, pelo Papa Sisto IV, consistiu na circunstância dos acontecimentos em apreço terem constituído o gérmen do franciscanismo no nosso país, onde tantos e tão bons frutos espirituais vem dando ao longo de mais de oito séculos.

A segunda prende-se com o facto de o martírio ora evocado ter sido uma das mais relevantes matérias tratadas na Crónica da Ordem dos Frades Menores, escrita por Frei Marcos de Lisboa (1510/1591), cronista franciscano e bispo do Porto, obra que foi publicada pela primeira vez, entre 1557 e 1562, em edição impressa, em três tomos.

Para se aquilatar da importância desta obra maior da historiografia religiosa portuguesa, há que relevar que, entre a 2.ª metade do séc. XVI e finais do séc. XIX, as Crónicas foram traduzidas para várias línguas e editadas em diversos países, tendo conhecido mais de cem edições, como lembrou o Prof. José Adriano Freitas Carvalho, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, na apresentação do autor no Colóquio sobre o mesmo realizado em 2001 nessa faculdade.

Por isto se pode avaliar o forte impulso que tal obra veio dar à literatura e cultura lusófonas. Mas não só: o seu impacto foi igualmente extraordinário na divulgação do franciscanismo, da fé cristã e do espírito missionário. Exaltando os feitos dos Santos franciscanos, principalmente de S. Francisco de Assis e S. António, grandes exemplos de virtude e santidade, a cujas personagens, vidas, milagres e sermões deu particular destaque, teve o condão de incorporar muitas obras franciscanas que se achavam perdidas em mosteiros e bibliotecas e inúmeras informações colhidas pessoalmente pelo autor na sua peregrinação por vários países, especialmente por Itália, onde visitou as principais cidades e lugares onde viveram ou deixaram marca aqueles Santos.

E, finalmente, uma terceira consequência que se reflecte na missão ecuménica da Igreja: o apelo a uma renovada e contínua evangelização feita com ética, sem proselitismos exagerados, no diálogo com outras religiões e culturas, no respeito pelos valores fundamentais da vida, da liberdade, da justiça, da paz e da caridade, com vista à construção de um mundo mais coeso, mais próspero e mais pacífico.

Com este sentido renovador, sugiro aos meus estimados leitores que se associem aos festejos deste ano jubilar de 2020, com a recomendação de uma leitura atenta e actualizada das Crónicas de Frei Marcos de Lisboa, fazendo com que estas se tornem, como o autor pretendia, um “manual de boa conduta cristã”.


Autor: António Brochado Pedras
DM

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17 janeiro 2020