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A crise atual da palavra e as Categorias de Aristóteles

A pretexto da primeira tradução francesa do histórico estudo de Adolf Trendelenburg, intitulado De Aristotelis categoriis (1833), a prestigiada revista Les Études Philosophiques* publicou recentemente o seu terceiro fascículo do corrente ano dedicado ao tema “Categorias da língua, categorias do ser”. Este número monográfico reúne, para além da referida tradução d’As Categorias de Aristóteles realizada por Alain Petit, um notável conjunto de contributos de especialistas na matéria.

Tal acontecimento já justificaria o destaque editorial dado por esta revista de Filosofia, tal é a importância do estudo de Trendelenburg na interpretação e fixação do que se deve entender por “categorias” no contexto do pensamento de Aristóteles.

Porém, do nosso ponto de vista, o interesse do assunto ultrapassa o âmbito da discussão meramente académica entre especialistas do grande discípulo de Platão, dado que toca numa matéria verdadeiramente nevrálgica da nossa cultura atual: a questão do fundamento, do significado e do valor das palavras e dos conceitos que usamos no quotidiano.

De facto, todos sentimos os efeitos devastadores da perda de valor da palavra nas relações entre os humanos. Desde há muito que as palavras, apesar de ornadas de sedutores efeitos retóricos, deixaram de ser o solo credível da comunicação entre as pessoas. Não é necessário um grande esforço para verificarmos que as palavras dadas são cada vez menos honradas, cada vez menos expressão da confiança, cada vez menos fecundadas pelo compromisso da verdade.

A aceitação inconsciente e acrítica da cultura da assim chamada pós-verdade, da pós-metafísica, da pós-transcendência, disseminando o vírus do ceticismo niilista, ataca inexoravelmente os fundamentos do discurso, seja no campo jurídico, da ética e da religião, da comunicação e da política, da economia, da ciência, da arte, da própria filosofia. É todo um ambiente e uma atmosfera cultural que compromete seriamente a saúde intelectual e espiritual do corpo social e de cada indivíduo.

Ora, em que sentido o estudo das referidas categoriasde Aristóteles podem ajudar a alterar este panorama? Precisamente por nos permitir perceber que já os termos mais gerais e, neste sentido, mais básicos com os quais construímos as frases do dia-a-dia (modos de predicação), correspondem por um lado à estrutura do discurso, mas pautam-se, por outro lado, pela ordem da realidade.

É uma questão complexa, mas de grande incidência prática. O que efetivamente está em causa é a conceção daquilo que as categorias são na sua natureza fundamental: serão elas apenas filtros da arquitetura de uma lógica gramatical – isto é, da sintaxe – da língua transposta para o nosso pensamento, ou corresponderão, também, aos modos fundamentais da manifestação da realidade? Neste segundo aspeto, longe de um formalismo lógico, as palavras ou categorias valeriam correlativamente como filtros ontológicos do ser. Ora, é aqui que está o cerne da questão.

Esta articulação que as categorias realizam entre a língua, o pensamento e a realidade surge na contemporaneidade ausente de um dos polos de sustentação: precisamente, a realidade. E por isso, o discurso esgota-se na sua própria formalização, assegurando-se do rigor lógico como único valor, deixando cair o valor de verdade ontológica, razão de ser do conhecimento pleno.

Ora, a lógica de Aristóteles – de que asCategoriasconstituem o primeiro tratado – está muito empenhada em garantir ao pensamento o máximo investimento na coerência, mas para melhor atingir o mais elevado conhecimento da verdadedas coisas. E o seu ponto de partida consiste na «apreensão da essência das coisas existentes», como se lhe refere oespecialista Émile deStrycker (sj).

Estamos persuadidos de que será possível superar a destrutiva crise da linguagem em que nos encontramos, mediante o aprofundamento da conceção da natureza do discurso e das categorias que o constituem, na linha da genuína interpretação aristotélica. Daí, também, a importância do tema da publicação anteriormente referida.

* Esta publicação periódica está disponível na Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica – Braga.


Autor: Carlos Bizarro Morais
DM

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26 dezembro 2018