“É motivo de melancolia para aqueles que passeiam por esta grande cidade [de Dublin], ou que viajam pelo campo, verem nas ruas, nas estradas, e às portas das barracas, uma multidão de pedintes do sexo feminino, seguidas por três, quatro, ou seis crianças, todas em farrapos, a importunarem cada passante pedindo esmola” Assim começa um famoso texto de Jonathan Swift, escritor conhecido, sobretudo, pelo clássico As Viagens de Gulliver [1].
Nesse escrito, intitulado Uma modesta proposta para prevenir que, na Irlanda, as crianças dos pobres sejam um fardo para os pais ou para o país, e para as tornar benéficas para a República [2], o autor sugere que estas crianças, “em vez de serem uma carga para os pais, ou para a paróquia, ou em vez de virem a necessitar de comida e roupa pelo resto das suas vidas”, adquiram uma utilidade prática, que é assaz inesperada.
Para Jonathan Swift, de quem a editora da Universidade Católica Portuguesa publicou Um Sermão para Quem Adormece na Igreja [3], o préstimo das crianças é nada mais, nada menos do que servir de alimento para os ricos. O autor explica que um sábio americano conhecido lhe garantiu que “uma criança jovem e saudável, bem alimentada, com um ano de idade” constitui “o alimento mais nutriente e completo – seja estufada, grelhada, assada ou cozida. E não tenho qualquer dúvida de que poderá igualmente ser servida de fricassé ou num ‘ragoût’”.
Jonathan Swift termina a proposta garantindo que dela não extrairá qualquer benefício pessoal. Assegura que, de facto, não tem “o menor interesse pessoal em tentar promover este trabalho necessário, não possuindo outro motivo além do bem publico do meu país e, pelo avanço do nosso comércio, de prover pelas crianças, aliviar os pobres, e dar algum prazer aos ricos”. O autor certifica o que diz fazendo notar que não tem crianças com as quais possa conseguir um único tostão e que a mulher já ultrapassou a idade de procriar.
Fernando Pessoa – que morreu há, assinalam-se hoje, 90 anos – usa este texto do escritor irlandês (1667-1745), que foi Deão da Saint Patrick's Cathedral, para falar daquele que considera “o traço mais fundo do provincianismo mental”, a “incapacidade de ironia” [4].
Para o poeta, o provincianismo, que consiste em seguir mimeticamente uma civilização “com uma subordinação inconsciente e feliz”, manifesta no caso português “três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia”.
Por ironia, deve entender-se, como Fernando Pessoa explica, “não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário”. Bem se compreende que a ironia não é algo ao alcance de todos: “A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz”.
Fernando Pessoa apresenta então o exemplo de Jonathan Swift, que considera ser “o maior de todos os ironistas”. Como o poeta português assinala, o escritor irlandês “redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome”, convidando, como se viu, os irlandeses a comerem os próprios filhos. Swift “examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério”.
A ironia parece hoje um expediente retórico impossível de usar. Sem algum elemento que assinale a presença da ironia, ela torna-se não apenas imperceptível, como invariavelmente causadora de sarilhos. No entanto, a ironia no sentido swiftiano parece omnipresente. Só um epígono de Jonathan Swift poderia dizer, por exemplo, que a exploração dos trabalhadores beneficia os trabalhadores.
[1] Guerra & Paz, 2017
[2] Deste texto datado de 1729 Há uma tradução de Helena Barbas disponível online em: https://www.helenabarbas.net/traducoes/2004_Swift_Proposal_H_Barbas.pdf e há nas livrarias uma edição da Antígona de 2013, com tradução de Paulo Faria.
[3] 2017
[4] Textos de Crítica e de Intervenção, Ática, 1980