Bem se sabe que todo o homem pode ser verdugo ou herói de si próprio: tanto pode ter dentro de si o poder da destruição como da construção. Desse modo, ou termina na boca dos predadores devidamente ruminado, ou será aquele que um dia os vivos não aceitam a sua morte pela dor e pela saudade que causam.
Logo, o homem será sempre um grande mistério!
Há sempre aquele que parece ser: causa boa ou má impressão: não se tem a certeza de como é, de como pensa ou de como vê os outros;
há aquele que diz ser: respeito os outros, ajudo os outros, procuro a virtude, amo os outros;
há aquele que julga ser: tantas vezes atraiçoa a verdade, esconde-a, nem mesmo ele sabe o que é e esconde a sobranceria que adquiriu;
há aquele que gostaria de ser: diferente de “todos os outros”, mais capaz que os outros ou o distinguido do seu bairro, da sua rua ou da sua empresa;
há aquele que finge: para comodidade sua, arranjos de vida, mostra-se corajoso, generoso, delicado, democratão e tudo que o beneficie;
há ainda aquele que é capaz de ser duplo: é contemplador de si mesmo, e a qualquer hora do dia e conforme o local em que se encontra muda de cor como o camaleão.
Sendo assim, os nossos comportamentos, as nossas mentiras, a nossa dissimulação quotidiana, todos os fingimentos que consideramos necessários para a nossa fama, constroem diariamente uma muralha de enganos entre o eu por nós próprios ignorado e aquele que desejaríamos possuir.
Quem já viveu umas boas dezenas de anos como eu, que conheceu e lidou com filhos de muitas mães nalguns sítios da Europa, do Oriente e do Ocidente, conclui facilmente – e resumindo por falta de espaço – que o homem tem a sua vida pública: comporta-se bem, mal, ou mais ou menos, perante a sociedade. Sorri ou raramente sorri, é simpático ou não, convive ou foge dos outros.
Tem o mesmo homem a sua vida privada: aquela vida a que o povo chama de “os telhados encobrem muitas coisas, vida que só ele ou algum dos seus conhece, vida que só transpira para o exterior o que quer e que jeitos lhe possa dar.
Finalmente temos o mesmo homem com a sua vida secreta: a vida que só ele vive, alimenta ou destrói, vida que ninguém, jamais, terá acesso. Esta vida secreta, por vezes surpreende - caso haja “descuido do próprio” - aos pontos da sociedade estupefactizada desabafar: “quem havia de dizer que ele era assim, ou que actuava assim?”
O saudoso Papa Francisco, escrevendo sobre a vida pública, privada e secreta do homem, alertou o mundo: “o ser humano é estranho… briga com os vivos, leva flores aos mortos, lança os vivos na sarjeta, afasta-se dos vivos, fica anos sem conversar com um vivo, desculpa-se, faz homenagens aos mortos, não tem tempo para visitar os vivos, critica, fala mal, ofende o vivo, santifica-o quando morre, não abraça… Aos olhos cegos do homem, o valor do ser humano está na sua morte, e não na sua vida. É bom repensarmos isto, enquanto estamos vivos”.
E porque são puras verdades as palavras do saudoso Papa e porque o homem é mesmo um mistério, recordo que na minha cidade há cerca de dois anos aproximava-se da porta do cemitério o carro fúnebre seguido de um táxi com o sacerdote e duas pessoas sentadas atrás. Mais ninguém.
Então parei a pensar no quadro descrito.
Quem seria o defunto? Que teria feito na vida? Que é que não fez na vida? Que erro ou erros poderia ter cometido? Será que não era da minha cidade? Seria um imigrante ou abandonado estrangeiro? Por que razão tão só, apenas com quatro acompanhantes no funeral, na vertical? Onde estavam os vivos que conheciam ou que lidaram com aquele ou aquela que seguia na horizontal?
Sabemos bem, que viver significa morrer aos poucos, morrer a todo o instante, morrer lentamente, agonizar.
Todo o amado, toda a recordação, todas as alegrias, todos os poderes que perdemos representam o fim de uma parte de nós, a extinção daquilo que se diz vida.
Todo o homem deve ser amado ou pelo menos respeitado, quer na vida ou na morte. Tantos falecem sem que familiares ou amigos reivindiquem a inerte matéria para “um final civilizado”.
Como dizia, repito, o Papa Francisco: “é bom pensarmos nisto, enquanto estamos vivos”.
(O autor não segue o acordo ortográfico de 1990)