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Sem lugar à mesa: a manjedoura denuncia o mundo dos excluídos

Há imagens que o tempo não desgasta. A manjedoura é uma delas. Repetida todos os anos em presépios, canções e celebrações, corre o risco de se tornar inofensiva, quase decorativa. Mas a manjedoura não é um enfeite natalício: é uma denúncia. Silenciosa, incómoda e profundamente atual.

O nascimento de Jesus fora de casa, fora da cidade e fora do sistema não foi um acidente romântico. Foi consequência direta de uma ordem social injusta. Um recenseamento imposto pelo poder imperial obriga uma jovem grávida e o seu marido a viajar; à chegada, “não havia lugar para eles”. A frase é curta, mas devastadora. Não havia lugar – não por falta de espaço físico, mas por falta de humanidade.

A manjedoura revela, desde o primeiro instante, um Deus que nasce do lado dos excluídos. Não nasce no centro, mas na periferia. Não nasce no palácio, mas num espaço destinado a animais. Não é colocado num berço, mas num comedouro. A mensagem é clara: quando a sociedade se organiza sem cuidar dos mais frágeis, Deus escolhe estar exatamente aí, no chão duro da exclusão.

Há, na manjedoura, uma crítica radical à lógica do privilégio. Enquanto uns acumulam, outros não encontram lugar. Enquanto uns se protegem, outros ficam expostos. O presépio desmonta a ideia de que a pobreza é fruto do azar ou da preguiça; mostra-a como resultado de estruturas que deixam pessoas de fora. Maria e José não são pobres por opção espiritual: são pobres porque o sistema não lhes abriu a porta.

Por isso, a manjedoura não pode ser lida apenas como sinal de humildade individual, mas como acusação coletiva. Ela pergunta-nos, todos os anos: quem continua a não ter lugar? Os sem-abrigo nas nossas cidades, os migrantes empurrados para campos improvisados, os idosos esquecidos, as famílias esmagadas pelo custo de vida, os trabalhadores que sustentam a sociedade mas vivem sem dignidade. A história repete-se, apenas com novos cenários.

Há também uma denúncia da indiferença. A cidade dorme enquanto uma criança nasce num estábulo. Ninguém repara, ninguém interrompe a rotina. Só os pastores – gente marginalizada, considerada impura – recebem o anúncio. O Evangelho parece dizer-nos que a injustiça persiste não apenas pela maldade de alguns, mas pelo silêncio confortável de muitos.

Contemplar a manjedoura sem deixar que ela nos interrogue é esvaziar o Natal do seu conteúdo mais perturbador. Celebrar o Deus-Menino sem questionar as condições em que tantos “meninos” continuam a nascer hoje – sem proteção, sem futuro, sem voz – é transformar a fé em folclore.

A manjedoura é pequena, mas o que ela denuncia é imenso. Denuncia um mundo que produz descartáveis. Denuncia uma economia que aceita que alguns vivam sem lugar. Denuncia uma religião que, quando se alia ao poder, corre o risco de não reconhecer Deus quando Ele nasce fora dos seus muros. Talvez por isso a manjedoura continue a incomodar. Porque nos obriga a escolher: ou transformamos num objeto bonito e inofensivo, ou deixamos que ela nos converta. Afinal, enquanto houver alguém sem lugar, a manjedoura não pertence apenas ao passado. Ela continua montada, à espera da nossa resposta.

Frei Márcio Carreira

Frei Márcio Carreira

16 dezembro 2025