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OS DIAS DA SEMANA É preciso decidir se a primazia é das pessoas ou dos automóveis

 

 


 


 

A mobilidade na cidade de Braga não é, digamos assim, propriamente exemplar. Os automobilistas permanecem em filas durante mais tempo e em mais sítios, estando o trânsito congestionado como nunca; os que andam a pé, não raras vezes, tropeçam e caem por causa de passeios irregulares ou danificados; os motoristas de transportes públicos sabem que, por exemplo, basta um carro mal estacionado para se atrasarem e os atrasos são demasiados; os que conduzem trotinetes circulam por sítios indevidos e sem cautela (sim, já levei com uma em cima numa passadeira para peões); e as propostas para aumentar a fluidez do trânsito são, amiúde, fetiches, como o BRT, sigla de Bus Rapid Transit, que em português, com ironia, tem sido traduzido por “autocarro de rodas tapadas” e que, em Braga, é, sobretudo ou apenas, um modo de esbanjar dinheiro. Perante este diagnóstico – e nele não incluindo a elevada sinistralidade rodoviária – é compreensível que o modo como nos movemos e sobre o que poderíamos fazer para o melhorar seja um tema relevante da campanha eleitoral autárquica bracarense.

A questão das cidades e da mobilidade tiveram em André Gorz um pensador pioneiro. Em Setembro de 1973, há cinquenta e um anos, o influente autor que reflectiu sobre os caminhos da sociedade contemporânea, usando, às vezes, o pseudónimo de Michel Bosquet, publicou na revista Le Sauvage um texto clássico e radical sobre “a ideologia social do automóvel” [1]. O carro é apresentado como um exemplo paradoxal de um bem que, ao contrário de um aspirador, de um rádio ou de uma bicicleta, que mantêm o seu valor de uso mesmo quando são possuídos por toda a gente, deixa de ser precioso quando todos o possuem. É um facto: quantas mais pessoas usam o automóvel, mais a circulação piora.

Todas as soluções foram tentadas para tentar resolver o problema, constata André Gorz, um dos fundadores da revista francesa Le Nouvel Observateur, acrescentando: “Todas elas, no final, agravaram a situação. Não importa se se multiplicaram as vias radiais e as vias circulares, os viadutos, as auto-estradas com 16 faixas de rodagem e com portagens”. O resultado é invariavelmente o mesmo: “Quanto mais estradas disponíveis houver, mais os carros a elas afluem e mais paralisante será o congestionamento da circulação urbana”. André Gorz lamentava que a desvalorização prática do automóvel não tenha concorrido para a sua desvalorização ideológica.

O que André Gorz pretendia é que nunca se tratasse isoladamente o problema do transporte. Ele deveria estar sempre em conexão com o problema da cidade, com a questão do trabalho, com o modo como se colocam as múltiplas dimensões da vida em compartimentos estanques: “um lugar para o trabalho, outro lugar para ‘habitar’, um terceiro para as compras, um quarto para aprender, um quinto para se divertir”. Para André Gorz, a forma como o espaço é organizado prolonga a desintegração das pessoas, cortando-lhes o tempo, a vida, “em fatias bem separadas”, para que em cada uma sejam consumidores passivos de tudo, para que nunca lhes ocorra a ideia de que trabalho, cultura, comunicação, prazer, satisfação das necessidades e vida pessoal possam e devam ser uma única e mesma coisa: a unidade de uma vida, sustentada pelo tecido social do concelho.

André Gorz propunha, em alternativa, que as cidades se construíssem de uma outra maneira, subordinadas a um princípio elementar: permitir que as pessoas nelas se sintam em casa. Nenhum meio de transporte “poderá alguma vez compensar a infelicidade de viver numa cidade inabitável”. As cidades e as freguesias que as constituem e rodeiam deveriam novamente transformar-se em “microcosmos adaptados para a realização de todas as actividades humanas, em que as pessoas possam trabalhar, morar, divertir-se, estudar e conviver”.

Esta incitação de André Gorz a uma ponderação global sobre a cidade e sobre como nela se circula torna-se ainda mais premente neste momento em que se é instado a reflectir sobre como viver melhor nos nossos municípios, respondendo, desde logo, a uma questão básica: damos a primazia a pessoas ou a automóveis?


 


 

[1] “L’Idéologie sociale de la bagnole”. Le Sauvage, Setembro-Outubro 1973. Em 2023, depois múltiplas republicações em diversos formatos, o texto foi editado em livro por dixit.net, uma agência de investigação e consultadoria urbana.


 

Eduardo Jorge Madureira Lopes

Eduardo Jorge Madureira Lopes

28 setembro 2025