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Um governo sem graça

Domingo ao jantar, no Bar da Aurora, discutia-se a situação política em Portugal. Tomei umas notas e logo depois da sobremesa pus-me a escrever. Desta vez, o ritmo tinha de ser diferente por causa do fuso horário. O tempo estava a ficar curto e não tinha a alternativa de outras vezes de descansar sobre o projecto de crónica. Em Portugal já amanhecera.

Na verdade, o governo individualista de Montenegro não estava a sair-se bem. De jeito maneira, como dizem os nossos irmãos e amigos de longe, do hemisfério sul. Está a confirmar-se tudo mais cedo do que era esperado. O Governo social democrata, com laivos de centrismo, não está mais em estado de graça. Ainda é um menino, mas já não tem qualquer graça.

Não ouvimos todos Montenegro dizer que reduziria o IRS em milhar e meio de milhões na apresentação do programa de governo e ainda antes na campanha eleitoral ao ponto de outros partidos acharem que estava a ser eleitoralista? Até os de cá sabiam disso sabiam da promessa. Com a teimosia no anúncio reiterado dessa medida convenceu muitos, e mesmo a generalidade da comunicação social. Pôde ler-se, por exemplo, num jornal digital, que "Montenegro duplica descida do IRS até ao verão". Era falso. Mas, ninguém do Governo, nem do partido que o suporta, veio a público desmentir. Pelos vistos, foi informação errada, ainda que bem intencionada da parte do jornal, suportada na oratória do primeiro-ministro. Houve um pedido de desculpa do autor da peça jornalística, apesar da culpa ser exclusiva da Aliança Democratica (AD) e do Governo, a quem terá agradado que a informação, apesar de não ser coincidente com as intenções do Executivo, fosse interiorizada pela população. Deu raia. Algumas perguntas bastaram para que se desse o estrondo.

Agora, o Governo só escapará da mentira ou da fraude, como se quiser caracterizar, se vier a concretizar a sua promessa eleitoral, ainda que o faça sob pressão e tardiamente. Ao contrário da atitude do jornal, o Governo veio a público acusar o mesmo de ter feito uma leitura errada das palavras do primeiro-ministro. Reacção idêntica teve o responsável do grupo parlamentar do Partido Social Democrata (PSD).

Fala-se de "embuste". Há quem lhe chame de " desfaçatez" e até de "fraude". Qualquer destes vocábulos deixa muito, muito, muito mal o primeiro-ministro, o Governo e a AD. Perderam o estado de graça que habitualmente se dá nos primeiros cem dias de exercício de funções. A confiança que ainda há poucos dias foi concedida ao Executivo perdeu-se. Provavelmente, em definitivo. Se estava só, por querer governar sem apoio parlamentar alargado, o Governo ficou mais isolado. Toda a oposição, ainda que com argumentos distintos, se manifestou crítica quanto ao "número" do governo. E os portugueses sentiram-se enganados e defraudados.

Montenegro, em momento algum, disse que cobria a proposta do PS, antes insistiu no "choque fiscal". Não se faz um choque fiscal com duas centenas de milhões de euros, isso é uma bagatela. Assim, para serem credíveis as palavras proferidas, o choque só deve começar a partir do Orçamento de Estado em curso e nunca contando com ele. É aqui que está a linha que separa o cumprimento das promessas e começa a pouca vergonha e a mentira, para não lhe chamar outra coisa.

Nos próximos dias, o Governo vai ter que dar o corpo às balas ou esconder--se nas trincheiras. Acredito que fique nestas últimas. Já deu sinais que não sairá do refúgio do verbo. As duas formas de dar o corpo às balas era justificar-se de forma convincente, mas não vejo como fazê-lo, ou confirmar o que prometeu a todos, o que parece difícil. Se não tivesse prometido o que prometeu, muito provavelmente, Montenegro seria líder da oposição ou, quem sabe, apenas o líder do segundo maior partido da oposição. Não basta anunciar, é preciso concretizar. Equívoco? Se o houve foi o Governo e Montenegro que o criou. Todos ouvimos as palavras do então líder da oposição a prometer, determinado, um "choque fiscal". E quando são muitos a ouvir da mesma maneira, é difícil que a maioria se equivoque.

Luís Martins

Luís Martins

16 abril 2024