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Votar pela Europa

No dia 8 de Maio de 1945, a imprensa anunciava o fim da II Guerra Mundial. Os jornais do Porto apresentavam primeiras páginas com uma estrutura semelhante. Do lado esquerdo, a duas colunas, falava-se de paz. “A paz”, dizia, simplesmente, o título do Jornal de Notícias. “Paz na Europa”, anunciava O Comércio do Porto. “Os povos que contribuíram para a Paz na Europa”, referia O Primeiro de Janeiro. Embora a paz fosse o bem mais ambicionado, os destaques, que ocupavam cerca de dois terços das primeiras páginas dos três diários, sublinhavam as circunstâncias que a tornaram possível. “A Alemanha rendeu-se, incondicionalmente, às Nações Unidas”, informava O Comércio do Porto. OJornal de Notíciasdizia algo idêntico “Os exércitos alemães renderam-se incondicionalmente”. “Após a incondicional capitulação da Alemanha e ao cabo de quási seis longos anos de estupenda luta, os exércitos aliados realizaram a plena e magnífica vitória das suas armas”, anunciava, mais longamente, O Primeiro de Janeiro. O Comércio do Portosalientava ainda: “O ‘Dia da Vitória’ é celebrado, hoje, por todos os povos aliados”.

Em Braga, o júbilo era escasso, notava o vice-cônsul francês no Porto num relatório que fez chegar ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do seu país, através da embaixada em Lisboa. O documento, datado de 20 de Maio, que a revistaCadernos do Noroeste*, do Centro de Ciências Históricas e Sociais da Universidade do Minho, divulgou, centrava-se no que se passava na capital do Minho e o título condensava o essencial: “Braga, cidade anti-francesa”.

As sete páginas que se encontram no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros de França são muito pouco simpáticas para a cidade. “Em diversas ocasiões este consulado constatou a atitude deliberadamente hostil manifestada pelas autoridades, pela imprensa e pela população de Braga em relação aos Aliados e principalmente a França”. Assim começa o escrito que, a seguir, aponta factos, personagens e sítios.

“No dia 8 de Maio, um reduzido número de pessoas tentou, como noutras cidades de Portugal, manifestar publicamente a sua alegria, percorrendo as ruas da cidade ordeiramente e sem emitir qualquer grito subversivo”. Saudar o fim de uma guerra, algo que se julgaria ser um gesto bem-vindo, sempre e em qualquer sítio, em Braga não apenas foi malvisto, como foi severamente reprimido. O governador civil solicitou mesmo ao comandante do Regimento de Infantaria 8 que mandasse disparar sobre os manifestantes assim que surgisse o primeiro pretexto. O vice-cônsul explica que a ordem não seria acatada a pretexto de que não provinha do superior hierárquico. O diplomata relata que, por isso, entrou em acção a Legião Portuguesa para atacar os que se congratulavam com o fim da guerra, arrancando-lhes uma bandeira inglesa e uma insígnia portuguesa. Pouco depois, a polícia e a guarda intervinham para deter manifestantes e os entregar à polícia política sob a acusação de terem provocado em Braga um movimento revolucionário, ainda que, segundo o vice-cônsul, a manifestação tenha decorrido em perfeita calma e com o único propósito de aclamar as Nações Unidas.

O relatório menciona que “a Ordem dos Advogados da cidade, ainda que monárquica e conservadora na sua maioria, julgou ser seu dever remeter um telegrama de protesto ao Ministro do Interior, reclamando a libertação dos acusados, enquanto a burguesia local e os meios eclesiásticos aplaudiam estas ‘medidas de ordem’ e inúmeras personalidades da cidade ‘faziam luto’ pela morte de Hitler”.

O fim de uma tragédia inominável deve ser saudado, ainda que o luto, de facto, se impusesse, não pelo hediondo chefe nazi, mas pelos milhões de seres humanos que ele e os seus sequazes metodicamente assassinaram. Do trabalho de luto, nasceu a ideia de uma Europa unida, edificada para que a guerra não regressasse, para que os totalitarismos fossem afugentados. Muitos meses de Maio decorridos, a Europa parece não ter memória do cortejo de destruição e de morte a que assistiu na primeira metade do século XX. A União Europeia tem mil e um defeitos, mas ajudou a que um horror idêntico não se repetisse. As duas guerras mundiais do século passado foram ateadas por extremismos como os que agora outros pretendem fomentar, contando com uma proverbial e disseminada apatia. A estratégia fanática, sempre assente na mentira, nunca varia muito: planta-se o medo para colher o ódio. Os que querem um continente mais livre, mais igual e mais fraterno, sabem que têm de semear e robustecer a difícil esperança. No próximo domingo, decidir-se-á o que quer a Europa colher.


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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19 maio 2019