“Eu me lembro de olhar ao redor e me perguntar com que direito as pessoas sorriam, se dentro de mim as luzes estavam apagadas. Foi assim no primeiro mês. Uma dor que parecia fadada a nunca mais terminar. A morte se repetiu muitas vezes até que eu finalmente aceitasse.” (Guerra, 2018).
A morte não se arrepende, ela não volta atrás. É uma verdade mascarada de absurdo, um paradoxo: ela só é quem é graças à vida. Atingido pela dor da perda há quem queira perder-se junto, fugir de si mesmo, deixar de pensar, de sentir. Perder um ser querido é morrer um pouco, nessas circunstâncias até o verbo dói.
Enlutar-se é, por vezes, mudar para uma cela blindada, embora sombria e triste parece ser o único sítio menos desagradável. Pelo menos aí não se ouvem as demandas do impossível: ser e estar, diferentemente do sentir.
Daí que, acompanhar no luto, requer mais silêncio do que capacidade argumentativa. E se chorar junto, saiba que o fará desde as suas próprias dores, não desde a dor do outro. É claro, isso também é empatia, só não vale a pena dizer que sente a mesma dor – o enlutado não irá acreditar nisso.
Por falar em paradoxos, o luto é como um parto. É preciso reaprender a viver, é como quem nasce de novo. Viver o luto é renascer, e renascer é um exercício bastante solitário. É olhar o mundo como nunca antes e reconhecer-se nele novamente. É como a criança que balbucia as primeiras palavras, dá os seus primeiros passos.
O luto demanda tempo, um tempo que é sempre próprio, numa experiência que geralmente é intransferível – como aliás o são, todas as experiências.
Num mundo programado para a felicidade, o luto é constrangedor. A morte costuma ser uma certeza espinhosa que não permite ser tocada com grande naturalidade.
Entre as correrias do dia-a-dia e as fotografias do quotidiano, ela abre um hiato de mal-estar. Entretanto, é bem possível que os tempos menos solitários – no que à presença de pessoas se refere – sejam as primeiras semanas. Logo as rotinas são retomadas e mais ninguém quer falar «nisso», só o enlutado que «não encontra outra coisa em que falar.» E assim a perda vai-se alojando no corpo, qual objeto que inicialmente parecia alheio, vai-se encapsulando – integrando – até deixar de incomodar.
O tempo muda os afetos de lugar permitindo que quem se foi passe a morar em nós. A dor transmuta numa saudade leve que leva para outras paragens e, distraidamente, a vida mostra-se com outras tonalidades.
Como se de uma pós-cirurgia se tratasse, a perda pede recolhimento. É preciso respirar o luto, entregar-se sem medo, até chegar o tempo deste ir embora. Amar quem está na memória é amar quem está vivo, quem está por perto. A falta pode ser assim, bastante reveladora e a ausência tornar-se saudável presença.
Referências Bibliográficas:
Guerra, C. (2018). Para Francisco. Edição Especial: 10 Anos Depois. Ed. Best-Seller.
Autor: Pável Modernell