No passado dia 5 de Outubro, foi tornado público, em Paris, o relatório da Comissão Independente sobre Abuso Sexual da Igreja (CIASE), pedido pela Conferência Episcopal Francesa (CEF).
De acordo com uma “estimativa considerada média”, as conclusões revelam um panorama aterrador: entre 1950 e 2020, em França, 2.900 a 3.200 homens, sacerdotes ou religiosos, abusaram de 216 mil crianças, sendo certo que o número total de vítimas se eleva ainda a 330.000 menores, se forem considerados os leigos em missão da Igreja.
O relatório concluiu também que, até ao início dos anos 2000, a Igreja Católica mostrou uma “profunda e cruel indiferença para com as vítimas, que não foram acreditadas ou ouvidas”.
Mas, para além das conclusões, a CIASE emitiu 45 recomendações para alteração de procedimentos, como forma de prevenir abusos.
Apesar de o grosso dos crimes haver prescrito e de ter morrido a maioria dos prevaricadores, não subsiste a menor dúvida de que o relatório em apreço irá ter uma forte repercussão na opinião pública gaulesa e mundial e irá obrigar a Igreja a tomar medidas para prevenir a repetição de novos escândalos.
E a situação é tanto mais dramática quanto é certo que a mesma vem somar-se a outras idênticas que, desde os primeiros anos deste século, têm vindo a ser reveladas noutros países – Estados Unidos, Irlanda, Reino Unido, Austrália, Canadá, Alemanha e Chile, para citar aqueles que me ficaram na memória.
Perante tão terrível realidade, é óbvio que o pensamento e o coração do Papa e do mundo católico em geral foram tomados de uma profunda tristeza pelas vítimas e de gratidão pela coragem que evidenciaram na denúncia e também para com a Igreja de França, de quem se espera que, unida ao sofrimento dos seus mais vulneráveis fiéis, possa trilhar um caminho de redenção.
Mas o documento em questão suscita ainda uma outra preocupação: a similitude cultural, religiosa e civilizacional que claramente existe entre a França e Portugal aponta para um panorama nacional não muito distinto do gaulês. E, não obstante, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), diferentemente da sua congénere francesa, não tratou de constituir uma Comissão Independente como aquela que produziu o extenso relatório recentemente publicitado, após uma árdua investigação que durou mais de dois anos e que envolveu a recolha de numerosíssimos testemunhos e a consulta de muitos arquivos.
Por cá, sabe-se que, por força de directrizes pontifícias, foram constituídas há cerca de dois anos, nas 21 dioceses existentes, comissões de protecção de menores e de adultos vulneráveis de cujos procedimentos, critérios, acção e resultados pouco ou nada se sabe.
Além disso, não ficou garantida a coordenação e centralização nacional da realidade de cada uma dessas comissões diocesanas, uma vez que todas elas respondem directamente perante a Pontifícia Comissão para a Tutela de Menores. Só no início desta semana é que o Conselho Permanente da CEP decidiu constituir um grupo coordenador, a partir das comissões diocesanas para “chegar a critérios e procedimentos comuns”, admitindo novas medidas no sentido de “fazer justiça às vítimas e respeitar a verdade histórica das denúncias apresentadas”.
Porém, a gravidade da situação dos abusos de menores e adultos vulneráveis que a Igreja reconhece ter eventualmente existido no nosso país não quadra com a diminuta ou nula actividade de muitas das ditas comissões diocesanas e com o reduzidíssimo número de denúncias recebidas – 4 em todas as dioceses! – nem, tampouco, com a ausência de informação pública que sobre a matéria vem sendo patenteada na maioria das dioceses.
É por isso legítimo que, perante os resultados obtidos noutros países por investigações conduzidas por comissões independentes, designadamente em França, a opinião pública nacional se interrogue por que razão a CEP não indigitou uma comissão independente para investigar os abusos sexuais cometidos sobre menores por homens da Igreja ou sob a sua égide, com o mesmo horizonte temporal e usando dos mesmos métodos e procedimentos da CIASE, para mais quando rejeita terminantemente qualquer atitude de encobrimento de casos. E, outrossim, quando uma ou outra voz isolada da hierarquia vem afirmando, sem que a CEP a contradite publicamente, que só faria sentido investigar o passado da Igreja Católica em Portugal, do género do que aconteceu em França, “desde que esse levantamento retrospectivo seja transversal à sociedade portuguesa e não apenas focado nos membros do clero”; ou, então, a questionar a utilidade/necessidade de uma comissão diocesana para protecção de menores. Se, como ensinou Jesus, a verdade é caminho de redenção, quem entre os seus representantes lusos a teme?
Em tempo sinodal, o povo de Deus tem o direito e o dever de conhecer a verdade dos factos, pois só assim poderá compreender o presente e reclamar a tomada de medidas que evitem a repetição dos erros do passado.
Autor: António Brochado Pedras