Depois de tanto tempo em que se experimentou uma vida fora do normal, com medidas de cautela que a saúde pública nos exigiu, vamos, paulatinamente, regressar à existência que conhecemos durante tantos anos no nosso dia a dia habitual.
Voltaremos a ver os cafés e os restaurantes com grande dinamismo, as ruas mais movimentadas, em suma, já não temos de pensar se devo ou não devo fazer alguma coisa menos comum. Com tantas limitações sempre surgia a ideia do “isto será permitido?” Enfim, sendo o homem um animal de hábitos, como nos ensinou a filosofia clássica, é provável que estranhemos a conduta costumeira que sempre conhecemos e que, perante todas as regras limitativas a que tivemos de nos sujeitar, talvez florescesse a ideia de que o que é “normal” é o que se experimentou num período de anormalidade comportamental, ou seja, na pandemia.
Isto significa que, aligeiradas as regras da conduta, necessitamos de nos adaptar ao novo modelo de vida, tão velho, afinal, como todos os anos que já somámos praticamente desde o nosso nascimento.
Não sei se está previsto que deixemos de usar obrigatoriamente a máscara. Devo confessar que, há dias, tive de contactar uma pessoa que conhecera há pouco tempo, com quem depois tratei alguns assuntos que motivaram vários encontros. Mas sempre devidamente “mascarados”. Fui visitá-la na sua própria casa e quando ela me abriu a porta, cheguei a pensar que me tinha enganado... A razão é simples: não estava com máscara e, momentaneamente, julguei tratar-se de alguém com quem eu não tinha quaisquer relações, ou que batera em porta errada.
Um velho amigo, bastante hipocondríaco, já me telefonou pelo menos duas vezes, a perguntar se eu sabia quando se deixava de usar a máscara. Como é um assunto que não me tira o sono, expliquei-lhe que não sabia. Mas ele insistiu comigo, como se eu fosse uma fonte informativa de alto gabarito. Desiludi-o, certamente, mas, verdade seja dita, não sei se nas últimas indicações oficiais houve alguma determinação sobre o assunto.
E o que dizer daquele meu conhecido, que se sentiu lesado com a liberalidade das últimas determinações oficiais, porque o obrigaram a pensar no seu horário profissional com mais rigor e também por ter, quotidianamente, de apanhar vários transportes públicos para se deslocar de casa ao trabalho e do trabalho até casa, como sempre fizera durante muitos anos. Mas, como observava, já não estava acostumado e tinha de adaptar-se. O normal, para ele, era viver com as limitações da pandemia. Isso caracterizara a sua “normalidade” durante muitos meses e agora, de repente, devia mudar de rumo e sair do que era “normal”, para se encaixar na lufa-lufa laboral que tão pouco entusiasmo lhe causava.
Certamente que um atestado médico generoso foi a solução encontrada por alguém que se tornou defensor dum tipo de existência de maior grau de pacatez. A COVID-19 proporcionou-lhe um ambiente mais caseiro e despreocupado. Agora, sim, pode prolongar a sua situação de sujeito a quem a doença epidémica não atacou, mas o habituou a uma circunstância de mais calma e menos movimento.
Lamentava-se profundamente um cristão por agora não haver razões que desculpassem um fiel do preceito dominical. As autoridades eclesiásticas, segundo opinava, foram demasiado severas. E tinham obrigação de pensar nos perigos desta medida, mesmo que sejam respeitados os números de participantes e as distâncias entre si. Há dias deu o seu apoio a uma iniciativa de alguém que pretendia que os desafios de futebol voltassem a ter público sem muitas limitações. “Isto não pode comparar-se com a ida à Igreja”, comentava. “São ao ar livre...”. É um fervoroso adepto de um dos nossos clubes mais representativos.
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva