Existe na Biblioteca Nacional de França uma secção reservada (denominada Inferno), onde se encontram um conjunto de panfletos e outros escritos anónimos do século XVIII que desempenharam um papel relevante na mobilização da opinião pública contra a Monarquia absoluta. Guilhotinada a 16 de Outubro de 1793, a rainha Marie-Antoinette ouvira na antevéspera, da boca do panfletário Jacques-René Hébert, acusações de incesto com o filho (Louis XVII) e outros comportamentos obscenos, para além da inculpação de espionagem.
Na verdade, já há muito que escritos anónimos lidos à socapa – alguns dos quais ilustrados com figuras pornográficas coloridas –, traçavam um perfil pouco abonatório da monarca. Em poucos anos, Marie-Antoinette passara de figura querida do povo a flagelo da nação, agente infiltrado, encarnação demoníaca da perversidade do regime.
Há poucos meses, o The Guardian (09/06/16) relembrava que, em Setembro de 2015, alguma imprensa britânica destilou excertos de uma biografia não autorizada do então Primeiro-Ministro, relatando a existência de um conjunto de fotografias em que David Cameron aparecia em posições obscenas com uma cabeça de porco, numa cerimónia de entronização da Piers Gaveston Society, uma fraternidade da Universidade de Oxford reputada pelos seus excessos.
Não faltaram então tiradas jocosas ou indignadas de comentadores e outras personalidades. Dias mais tarde, a co-autora Isabel Oakeshott reconhecia que a informação se apoiava apenas num testemunho, sem qualquer prova. Ou seja, não tinha visto fotos nenhumas. A jornalista chegou mesmo a argumentar que compete aos leitores dar crédito ou não à informação publicada.
Mais recentemente, o New York Times (27/01/17) contava como Cameron Harris, jovem recém-diplomado em Ciências Políticas, decidiu criar um site de notícias falsas para obter proventos publicitários e assim saldar as suas dívidas. Poucas horas de “trabalho” renderam-lhe alguns milhares de euros. Foi a partir da mesa da cozinha em Annapolis (Maryland) que, em finais de Setembro de 2016, escrevinhou, entre outras, a seguinte notícia: “Última hora: dezenas de milhares de falsos boletins Clinton descobertos num armazém”. Uns dias mais tarde, num comício em Columbus (Ohio), o candidato Donald Trump levantava a suspeição sobre fraudes massivas no acto eleitoral que então se avizinhava.
Sempre existiram versões alternativas – e bem sabemos que a verdade oficial não corresponde sempre à verdade dos factos –, mas um dos problemas desta era da pós-verdade é não fazer distinção entre centrais de comunicação partidárias, meios de comunicação social, figuras da blogosfera e utilizadores das redes sociais. Cada um tem a sua verdade, ou melhor, uns pós de verdade. E o problema da poeira não é apenas turvar a vista quando se levanta, mas continuar a tirar o brilho às coisas quando se pousa sobre elas…
Autor: Manuel Antunes da Cunha