As festas cristãs, sobretudo o Natal e a Páscoa, têm na Sagrada Escritura a sua fundamentação e enquadramento. Há, porém, um conjunto de dados que lhes estão associados e que não constam dos textos bíblicos. Muitos deles foram recolhidos na literatura apócrifa (textos que não entraram no cânon bíblico).
Postos de parte durante muitos séculos, por serem considerados suspeitos de heresia, um perigo para a fé e até veículo de erros religiosos, os livros apócrifos foram, durante muitos séculos, avaliados negativamente pelos cristãos, mesmo se nunca condenados oficialmente. Aliás, “muitos deles foram escritos em boa fé, expondo algumas doutrinas sãs, postas na boca de personagens importantes do Antigo ou NT, para terem maior autoridade. Os apócrifos cristãos são o reflexo da intensa piedade popular e propunham-se frequentemente satisfazer o desejo dos fiéis de saberem mais pormenores sobre episódios da vida de Jesus, de Maria, dos apóstolos e de outros personagens do NT” (Armindo Vaz, Palavra viva, Escritura poderosa, p. 158).
Com a descoberta dos manuscritos de Qumran, entre 1947 e 1956, despertou o interesse cultural, histórico, hermenêutico e religioso por estes livros, potenciado pela publicação de novas edições e traduções. O estudo crítico fez vir ao de cima a sua importância para conhecer o judaísmo intertestamentário (bem mais plural do que se pensava), para compreender as origens do cristianismo e do Novo Testamento (o contexto em que se desenvolveu o ministério de Jesus e se formaram as primeiras comunidades cristãs), para conhecer a história da fixação do cânone (a progressiva consciência canónica surge, em boa parte, como reação a alguma literatura apócrifa), para perceber a história da teologia do cristianismo primitivo (é significativa a influência desta literatura no Novo Testamento) e para compreender a religiosidade e a cultura ocidentais, como adiante se verá. A explicitação de cada um destes aspetos daria, por si só, uma ampla reflexão, mas é o último aspeto que merecerá a nossa atenção.
Os apócrifos inspiraram homilias, meditações e a própria liturgia cristã. Do apócrifo 4 Esdras 2, 34-35 foi tomado o intróito da Missa de Requiem (“Requiem aeternam dona eis, Domine...”). As festas litúrgicas de S. Joaquim e Santa Ana (26 de julho), a Natividade de Maria (8 de setembro), a Apresentação de Maria no Templo (21 de novembro) e a Imaculada Conceição (8 de dezembro) têm a sua origem no Protoevangelho de Tiago.
Também a arte sacra e a iconografia religiosa, assim como a pintura e a literatura, se serviram dos textos apócrifos: frescos e quadros de pintores como Fra Angelico, Giotto, Tiziano, Michelangelo e outros; obras de diversos poetas e escritores. Limitamo-nos a referir a Divina Comédia (Dante Alighieri) e O Paraíso perdido (John Milton), este último profundamente influenciado pela Vida de Adão e Eva (séc. I d. C.). Além disso, ainda hoje se escrevem romances em forma de evangelhos apócrifos: S. Martín, Evangelho secreto da Virgem Maria; B. Graña, Proto-evangelho do neto de Herodes.
Os nomes dos pais de Maria (Joaquim e Ana), o bastão das imagens de S. José, encimado por uma flor, o nascimento de Jesus numa gruta e a presença do boi e do burro são dados colhidos no Evangelho do Pseudo-Mateus, 14 (séc. VI d. C.). Vem do Evangelho arménio da infância a designação de “Reis” para os Magos e o nome com que os conhecemos: Melchior, Gaspar e Baltasar.
A comovente história da Verónica é retirada de A paixão de Pedro segundo o Pseudo-Lino, 4-6 (séc. IV d. C.) e o intrigante acontecimento do Quo vadis? deriva dos Atos de André. Aí se inspira o romance de Henryk Sienkiewicz (1895) e o filme a que deu origem, dirigido por Mervyn LeRoy (1951).
A reabilitação da literatura apócrifa não deve, contudo, conduzir à sua excessiva valorização, como se nela descobríssemos uma suposta verdade que a literatura canónica omite ou esconde. Carece de fundamento esta forma de pensar que carateriza alguns ambientes culturais do nosso tempo, marcados pela aversão religiosa, pelo ateísmo teórico e/ou prático e pela suspeita generalizada em relação ao procedimento das Igrejas cristãs, no que ao cânon bíblico diz respeito.
Autor: P. João Alberto Correia