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Uma liberdade sonhada...

O IV Domingo da Quaresma (Ano C) oferece-nos uma das mais belas e densas parábolas da Escritura. Conhecida como “do filho pródigo” (15, 11-32) é uma verdadeira obra-prima: o filho mais novo é o ícone dos cobradores de impostos e pecadores (v. 1) e o mais velho a ilustração dos fariseus e doutores da lei (v. 2). Num contexto claramente polémico, onde se faz uma alusão velada à suposta justiça dos escribas e fariseus, o texto vai adquirindo uma coloração apologética, face à atitude de Jesus; e didática, no que toca aos que murmuram dele e o criticam. A parábola pode dividir-se em duas partes, conforme as atitudes em causa: vv. 11-24 (o filho mais novo) e vv. 25-32 (o mais velho). Presente nas duas, o pai é quem as une e torna inteligível o conjunto. Por agora, limitamo-nos a comentar a atitude do filho mais novo, com quem mais nos identificamos. Se, no direito de primogenitura, o filho mais velho podia exigir a distribuição dos bens, nesta parábola, é o mais novo quem o faz (no v. 12, o verbo está no imperativo). Permitido por lei, este procedimento era desaconselhado, visto que relegava os pais para uma situação de miséria e os tornava dependentes da esmola dos filhos. Se o irmão mais velho tivesse exigido a sua parte e lhe desse o mesmo destino, rapidamente o pai morreria. E não será desajustada a conclusão, se tivermos em conta que o texto afirma: “o pai repartiu a vida () entre eles” (v. 12). Para o pai, exigir-lhe a herança antes de morrer constituía uma atitude próxima a desejar-lhe a morte. Num claro respeito para com as exigências do filho e a sua liberdade sonhada, o pai reparte os bens entre os dois. Até certo ponto, faz uma experiência de morte. O filho mais novo abandona a casa paterna, parte para um país longínquo, onde, dependente da própria herança, sobrevive à custa do pai e quase morre, quando começa a depender de si e do seu trabalho para viver.
  1. a) Uma vida que se destrói
Em circunstâncias adversas, a sua situação degrada-se e a narrativa serve-se de duas frases para que o leitor se aperceba disso. - “Foi colocar-se ao serviço de um dos habitantes daquela terra…” (v. 15) Quem se recusa a estar com o pai encontra-se agora sujeito às condições impostas por um estranho, num país estrangeiro e em tempo de fome. A vida torna-se mais difícil e amarga, uma experiência de quase morte, num ambiente hostil ou, pelo menos, desconhecido. O filho que mata o pai em seu coração caminha a passos largos para a morte. - “… o qual o mandou para os seus campos guardar porcos” (v. 15). Segundo a Lei, guardar porcos (Dt 14, 8 classifica-o como “animal impuro”) era uma atividade degradante e inaceitável. Pior se torna que até o seu alimento lhe seja cerceado. A situação do filho mais novo tornou-se pior que a dos porcos. Como assertivamente refere R. Fabris, “o máximo de miséria para o ambiente bíblico é evocado por esta situação de escravidão, fome e solidão fora da própria terra” (“O evangelho de Lucas”, p. 162).
  1. b) A decisão de refazer a vida
Num beco sem saída, o filho mais novo decide voltar para casa. As razões são a fome (“Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância...” [v. 17]) e o pecado (“Pai, pequei contra o céu e contra ti” [vv. 18.21]). Que tenha pecado contra o pai, é claro! Que tenha pecado contra Deus, deduz-se do desrespeito pelo mandamento: “Honra o teu pai e a tua mãe” (Ex 20, 12; Dt 5, 16). Não deixa de ser sintomático que, apesar de tudo, continue a olhar e a invocar o pai como tal. Aconteça o que acontecer, o pai nunca deixa de o ser! O filho mais novo assume a sua culpa, de forma lúcida e responsável. De facto, não foram as circunstâncias que determinaram a situação (poderiam servir de atenuantes), mas as suas atitudes. Ele tem consciência clara da sua culpa e isso é crucial no processo da mudança. O pecado em causa é mesmo este: ter arruinado a vida que a relação entre pai e filho e entre irmãos significa e gera. A fome ajudou-o a ter consciência do pecado e a tomar a única decisão válida: “levantando-se, foi ter com o pai” (v. 20). Tinha feito uma experiência de morte e precisa de erguer-se. Percebe também que a sua situação já não é a mesma, pois o pecado deixou marcas: “já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros” (v. 19). Outra coisa não lhe parece pensável nem possível. Não merece mais do que isso! E não seria já esse tipo de relação que, antes de partir, ele mantinha com o pai? Se, antes, a relação fosse mesmo filial, nada disto teria acontecido. Tomada a resolução, nem sonha com o que lhe vai acontecer, porque a misericórdia do pai está muito acima do pecado e da traição que o filho cometeu. Sonhou a sua liberdade e nem se apercebeu que, com isso, estava a dar asas a um sonho maior: o da misericórdia do pai.
Autor: P. João Alberto Correia
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21 março 2022