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Uma liberdade “coarctada”...

Antecipando a reflexão sobre a “parábola do filho pródigo (Lc 15, 1-3.11-32), ontem proclamada, detivemo-nos, há oito dias, na análise da atitude do filho mais novo (“uma liberdade sonhada”). Hoje, a atenção desloca-se para o mais velho – acusa o pai de lhe ter coarctado a liberdade – e deixamos para a próxima semana uma reflexão sobre a atitude do pai, corrigindo as dos filhos e “remendando” o que ainda era possível.

Ao longo dos tempos, a tradição eclesial identificou os pecadores com o filho mais novo, mas não é de descurar semelhante identificação com o mais velho (11, 25-32). À primeira vista, são duas atitudes diferentes (a do mais velho é vista frequentemente como menos grave e não falta até quem lhe dê razão!). A verdade é que lhes estão na raiz modos tão semelhantes que as tornam substancialmente iguais, mesmo se diferentes, nas suas expressões. Por outras palavras, “a história do filho mais novo é a experiência de uma vida truncada pelo orgulho e pela traição; a vida do filho mais velho descreve a rotina de uma existência triste e fechada à bondade do pai” (F. Ramis Darder, Lucas, evangelista da ternura de Deus, ed. Gráfica de Coimbra, Coimbra 2004, p. 50).

a) O filho mais velho estava no campo…

Tendo a preferência nos direitos de herança (2/3 dos bens), o filho mais velho viu-se ultrapassado pelo mais novo que exigiu a sua parte e a gastou “numa vida desregrada” (v. 13), no dizer do texto; ou mesmo “com meretrizes” (v. 30), na expressão acintosa do seu irmão. O primogénito continuou a fazer o que devia: manteve-se na casa paterna e dedicou-se ao cuidado dos campos e dos animais.

É muito sintomático que, numa dessas circunstâncias, ao aproximar-se de casa, ouvindo música e danças, não entre, mas opte por chamar um dos servos para se informar (v. 26). Já tinha varrido o irmão do coração, a casa parece já não ser sua e a família já pouco ou nada lhe diz. Compreende-se a dificuldade em entrar e mais ainda em perceber a festa e nela participar.

b) Encolerizado, não queria entrar

O filho mais velho nunca desobedeceu a uma ordem do pai – é ele quem o diz! – e nem um cabrito lhe foi dado para fazer uma festa com os amigos (v. 29). Como pode agora o seu irmão ser festejado com um vitelo gordo? Se, à primeira vista, parece ter razão, uma análise mais profunda e atenta leva-nos, pelo menos, a suspeitar que “a vida do filho mais velho descreve a rotina de uma existência triste e fechada à bondade do pai” (F. Ramis Darder, o. c., p. 50), tal como as pedras que, rodeadas de água por todos os lados, continuam interiormente secas.

Raciocina segundo a lógica humana e, por isso, não entende que possa ser recebido assim quem não se portou de forma justa e reta. Não sabemos se alguma vez tinha alimentado com o irmão algum tipo de relação, mas a verdade é que, agora, a rutura estava instalada, a ponto de já não dizer “o meu irmão”, mas “esse teu filho” (v. 30), uma afirmação que deixa transparecer uma boa dose de desprezo e raiva, se não mesmo de ódio. Ao mesmo tempo, não se declarando irmão do filho do mesmo pai, não só está a ferir de morte a filiação como a própria paternidade. Além disso, parece não manter com o pai uma relação de confiança e à-vontade – é curioso notar que, ao contrário do irmão, nunca lhe chama “Pai”! – e, em relação ao irmão mais novo, é evidente um distanciamento aparentado com a morte.

Com expressões diferentes, os filhos são muito semelhantes: o mais novo experimentou a fome, o mais velho não quis comer; o mais novo deixou a casa paterna, o mais velho não quer aí entrar; o mais novo sonhou com a liberdade, o mais velho percebeu a sua liberdade “coarctata”. No essencial, as razões as mesmas: a ausência de sentido de família, a morte da relação e dos afetos que geram vida. Os efeitos é que são diametralmente opostos.

O texto não diz se o filho entrou nem refere as atitudes posteriores do pai. A parábola termina em aberto, como convém a uma narrativa que se pretende interpelante e assim possa suscitar no leitor reflexão e um juízo sobre a situação: “ao nível objetivo, Jesus responde com o ensinamento que partilha, mas deixa ao ouvinte a responsabilidade da decisão subjetiva” (F. Bovon, El evangelio según San Lucas, III [Lc 15, 1 – 19, 27)], ed. Sígueme, Salamanca 2004, p. 29). Os fariseus e os doutores da lei entenderam bem – e com eles também nós – onde Jesus pretendia chegar. A lição está dada, mas para já só em parte. A reflexão da próxima semana completá-la-á.


Autor: P. João Alberto Correia
DM

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28 março 2022