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Uma laranja deitada ao lixo

Quem se hospedar em algum desses generosos hotéis que proporcionam pequenos-almoços variadíssimos e abundantes poderá reparar na quantidade enormíssima de comida e de bebida que – como é de borla – sobeja em múltiplas mesas, deixada por gente assaz perdulária. Muitas vezes são os mais novos que anseiam por experimentar tudo, mas não são apenas eles que imediatamente colocam de lado o que quase não provaram. A imagem de tamanha quantidade de comida que vai para o lixo é chocante mesmo para quem não for particularmente sensível ao problema do desperdício alimentar e não há muitos sítios em que ela se afigure tão descaradamente evidente. Desperdiçar alimentos não é, contudo, algo que só fazem os outros. Mais ou menos esbanjadores, somos todos. “Não passa um dia sem vermos comida em perfeitas condições para consumo no contentor da nossa rua: estima-se que cada português desperdice 100 quilos de alimentos por ano. Responda honestamente: qual foi o último alimento que pôs no lixo – e porquê?” Acabado de editar pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o livro Desperdício alimentar, de Iva Pires, professora da Universidade de Lisboa, não pretenderá dar uma resposta específica a essa interrogação destacada na contracapa, mas desafia os leitores a agir para remediar uma situação, tanto mais grave quanto se sabe que, no mundo, ao mesmo tempo que se estragam 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos anualmente, há 805 milhões de pessoas a padecer de subnutrição ou a viver numa situação de insegurança alimentar. O livro começa com um exemplo eloquente. “Se em minha casa se estragar uma laranja numa semana, porque se compraram demasiadas e uma acabou por apodrecer, tendo em conta que somos 4 043 726 famílias em Portugal (em 2016, segundo a Pordata) e que uma laranja pesa em média 80 gramas, nessa semana deitaram-se para o lixo em Portugal 323 toneladas de laranjas, e por ano 16 800 toneladas”. Iva Pires calcula que isto se traduz num desperdício de 25 200 euros. Depois, expõe uma sugestão: “Façamos o mesmo exercício incluindo maçãs, peras, pão, alfaces ou iogurtes que, semanalmente e por razões variadas, acabam no lixo”. Com esta introdução, não se estranhará o desafio com que o livro finda: “Já pensaram o que representaria para a redução do desperdício alimentar em Portugal se todas as quatro milhões de famílias dessem um pequeno contributo?”* A autora explica por que é o desperdício alimentar “um problema grave, que convoca questões ambientais, económicas e éticas” e propõe, como alternativa “à economia linear de ‘extração-produção-deitar fora’”, a “economia circular”, que prolonga a vida dos recursos, “recuperando-os e reciclando-os”. Entre os modos de não estragar, há os apurados num inquérito citado por Iva Pires: os consumidores podem reduzir o desperdício tomando decisões mais reflectidas ao fazer compras; planeando as refeições; reaproveitando as sobras em vez de as deitar fora (embora isso não seja referido, o que nos sobeja quando vamos aos restaurantes também merece ser reutilizado); usando melhor o congelador, nele armazenando alimentos em excesso para os utilizar mais tarde; reclamando embalagens mais pequenas às cadeias de distribuição. Sobre o combate ao esbanjamento, empreendido por Organizações Não-Governamentais (ONG) e movimentos da sociedade civil, como os Bancos Alimentares contra a Fome, a Re-food ou a Dariacordar/Movimento Zero Desperdício, dá também conta o livro, referindo os benefícios da recuperação de alimentos ainda em condições de consumo para doação – alimentos não cozinhados que se aproximam do fim do prazo de validade e não foram vendidos ou refeições preparadas que não foram servidas em cantinas ou restaurantes. Outro género de iniciativas é promovido lá fora. Em Copenhaga, na Dinamarca, o supermercado WeFood, gerido por uma ONG, vende apenas produtos que, sendo adequados e seguros para consumo, ultrapassaram o prazo de consumo preferencial, têm rótulos incorrectos ou embalagens danificadas. Em Portugal, também há exemplos idênticos. É o caso da Cooperativa Fruta Feia, com 145 produtores parceiros, que lançou a campanha “Gente bonita come fruta feia” para criar um mercado alternativo para as frutas e as hortaliças que as grandes superfícies comerciais não vendem por serem “feias”. Perceber que o desperdício alimentar é um problema grave é já um bom ponto de partida para o começar a resolver. *A autora escreve, com certeza por lapso, “quatro mil famílias”.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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7 outubro 2018