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Uma História tecida de histórias

O ser humano é um narrador das histórias que escuta e que tece (a palavra latina textum significa “tecido” e “texto”), pelo que a narrativa se assume como instância de epifania da identidade e existência humanas, nas suas grandezas e debilidades, derrotas e conquistas, descobertas e vislumbres.

Umberto Eco afirma que “contar e escutar relatos é uma função biológica” e fala mesmo de uma “biologia da narratividade”. Pode ser um pouco exagerado, mas uma coisa é certa: sendo o ser humano “o único que tem necessidade de narrar-se a si mesmo, ‘revestir-se’ de histórias para guardar a própria vida” (Papa Francisco), a narração é uma categoria vital, “é a estrutura basilar da comunicação e o denominador comum das diversas formas literárias” (Gianfranco Ravasi), como bem o ilustra a literatura universal.

Fundamental na vida, a narrativa é imprescindível na fé. Basta ter noção de que a Bíblia é uma História tecida de histórias. De facto, o texto bíblico dá-nos conta, em forma predominantemente narrativa, de um conjunto vasto de acontecimentos históricos, onde a salvação se torna tangível. Comprovam-no, entre outras, as narrativas do Êxodo e a dimensão essencialmente narrativa dos evangelhos.

Espelho da vida de um povo e seu paradigma, a Sagrada Escritura sublinha a importância vital da narração. A narrativa dos evangelhos, em particular, constitui “uma leitura, forçosamente interpretativa, dos acontecimentos fundadores da fé. Do lado da história contada, o relato do evangelho atesta a anterioridade histórica e teológica dos factos revelados, coloca-os à distância e preserva-os da penhora do leitor. Do lado do leitor, a narração revela-lhe que não é de crença e de lei que se reveste o relato (...). Deste duplo ponto de vista, a narração manifesta-se como um instrumento não somente pedagógico, mas eminentemente teológico” (Daniel Marguerat).

Sendo “a Bíblia (...) um mundo de histórias contadas” (Daniel Marguerat), introduz-nos na aventura humana e crente de renovar as histórias e deixar-nos renovar por elas. É sabido que “uma história boa é capaz de transpor os confins do espaço e do tempo à distância de séculos, permanece atual, porque nutre a vida” (Papa Francisco); renova-se e renova-nos, à medida que a contamos e nos deixamos transformar por ela. Da narração depende a transformação do olhar, do pensar, do sentir, e, em última instância, da história humana. A narração reconfigura a vida.

Se “o sagrado só pode captar-se de forma narrativa” (Domingo Cía Lamana), torna-se inquestionável o papel decisivo da narrativa para falar de Deus e comunicar a fé. Concordamos, por isso, com Adolphe Gesché, quando afirma: “se é verdade que Deus é indizível, não é verdade que ele seja inenarrável”. E com Eberhard Jüngel: “se (...) a história, enquanto tal, necessita de ser contada, então a humanidade de Deus, que não é compreensível senão como história, não encontra o seu correspondente linguístico senão no processo do relato”.

As narrativas bíblicas recordam-nos que a melhor forma de falar da fé não é definir, mas expor; não é argumentar, mas narrar. Na verdade, “o cristianismo não é, em primeiro lugar, uma comunidade de argumentação e interpretação, mas uma comunidade de narração” (J. B. Metz). E “a fé cristã só se compreende verdadeiramente contando uma história” (A. del Agua), porque, na sua génese, está a história contada.

A formação humana e cristã pautou-se, durante séculos, por um forte investimento nos conceitos e fórmulas, tendo desvalorizado e, por vezes, até esquecido as narrativas que lhe dão enquadramento, profundidade e encanto. Porém, só terá futuro se for essencialmente narrativa, até porque o modo como se diz (a expressão narrativa da fé) é fundamental para comunicar bem o que se pretende dizer (os conteúdos da fé).

É tão evidente a importância da narrativa na vivência e no testemunho da fé cristã que, sobretudo no Tempo Pascal, a liturgia encarrega-se de dar voz e relevo às narrativas pascais, propondo-nos em cada texto proclamado um verdadeiro “laboratório da fé pascal” (J. Tolentino Mendonça) que em muito contribui para que reconheçamos a Sagrada Escritura como uma História tecida de histórias.

*Professor na Faculdade de Teologia – Braga e Pároco de Prado (Santa Maria)

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Uma história boa é capaz de transpor os confins do espaço e do tempo à distância de séculos, permanece atual, porque nutre a vida” (Papa Francisco)


Autor: P. João Alberto Correia
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10 maio 2021