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Uma fina camada

Não estou a atraí-lo para as agora omnipresentes questões do clima, inquestionavelmente relevantes, caro leitor.

Em jeito de alerta doméstico, proponho-lhe uma reflexão sobre as fraturas sociais que marcam o nosso país. Nos indicadores internacionais, Portugal surge recorrentemente referenciado, designadamente no plano da UE ou da OCDE, como um dos países mais desiguais no respeitante à distribuição da riqueza ou rendimentos. Ao tempo da malfadada troika, exuberando na militância a favor da receita apresentada pelos seus agentes, em nome da competitividade, Passos Coelho chegou a lamentar o valor do salário mínimo nacional, tido por excessivo face aos indicadores de produtividade do país, e assim visto como um entrave para o crescimento das nossas exportações.

Os governos de António Costa – ainda que não virando em absoluto a página da austeridade, conforme foi propagandeado repetidamente até há pouco tempo pelo próprio primeiro-ministro – reconfiguraram a receita para o crescimento e, no quadro de uma conjuntura económica internacional favorável, libertaram espaço para a melhoria dos rendimentos dos assalariados, promovendo particularmente de forma significativa, por força de lei, o crescimento do salário mínimo.

E não obstante os avisos de algumas vozes agoirentas sobre os potenciais efeitos perniciosos de tal política para a economia, o governo atual já assumiu o compromisso de garantir o incremento da remuneração mínima dos assalariados em 25% nos próximos quatro anos, o que, atendendo à inflação perspetivada, não deixará de ser significativo. Convenhamos, por cotejo com os países mais desenvolvidos (e Portugal está catalogado como um “país de desenvolvimento muito alto”, no quadro do IDH, ainda que próximo da cauda neste grupo), mesmo daqui a quatro anos o salário mínimo nacional não deixará de ser modesto, propiciando um escasso poder de compra aos assim remunerados.

Depois, temos todos os outros assalariados e afins a ver que o teto não se move... O imenso grupo das classes médias, algo difuso na sua distribuição, não tem beneficiado de forma visível das melhorias atrás reportadas e reconfigura-se de forma crescente quase encostado à bitola da remuneração mínima. O “enorme aumento de impostos” adotado por Vítor Gaspar, ministro das Finanças de Passos Coelho, para lá de alguns impostos diretos (como a subida para 23% do IVA da eletricidade, por exemplo), refletiu-se de forma particular nos rendimentos das classes médias, que passaram a ver descontado nos seus rendimentos um valor mais expressivo no IRS.

Entretanto, a reanimação económica instalou-se assente em remunerações médias baixas, designadamente nos primeiros anos de atividade da generalidade dos quadros universitários e, no essencial, “o enorme aumento de impostos” continua a fustigar as ditas classes médias. E não tendo sido descoberta, ou tentada, uma forma de coagir legalmente a subida dos salários médios, vai-se tornando patente que Portugal tende a prefigurar-se como um país marcadamente dual: de um lado, a imensa mole de uma classe baixa, ligeiramente diferenciada, que ancorada em empréstimos de longo prazo e baixo juro consegue alardear um razoável nível de vida; do outro, uma elite em estreitamento crescente que ultrapassa todas as dificuldades, que cresce na riqueza e que se for preciso porá de novo a coletividade a pagar os desmandos que venha a provocar na banca, tal qual como sucedeu em tempos recentes.

Neste quadro, a “antiga” classe média, tradicionalmente apregoada como o suporte das democracias liberais, tenderá a esfumar-se, a estreitar numa outra irrelevante camada quase residual. E os populismos, tal como há cerca de um século sucedeu com as propostas fascistas, poderão cativar um crescente número de adeptos ou de indiferentes observadores entre os “escombros” da atual classe média, até que acedam ao poder e a democracia se esvaia uma vez mais… Não obstante todas as diferenças (hoje não há o fantasma da hiperinflação, das ocupações da propriedade, do desemprego assustador, sobrando no Norte da Europa a difícil gestão dos refugiados), não obstante a história não ser mimética, os avisos estão por aí.

A política consiste em fazer opções. Não ignorando o apelo do atual primeiro-ministro para que o patronato aumente os salários médios – de forma a evitar a dualidade aqui assinalada, percebe-se –, o seu governo, fixado no objetivo (bastante popular) de eliminar o défice e encolher a dívida pública, recusa-se a melhorar competitivamente os salários médios ou mais elevados da Função Pública, afora a uma ou outra exceção, conforme o observado com os juízes e magistrados. E assim, muitos dos quadros mais valiosos do Estado, quando vislumbram boa alternativa tendem a abandonar o serviço público.

Jovens médicos especialistas (ou menos jovens), pagos a pouco mais de mil euros líquidos, que debandam para o setor privado, são o exemplo mais conhecido da opinião pública. E toda a tentativa de “conscrição” no quadro do SNS, como noutras áreas do Estado, deve ser precedida de aviso prévio aos candidatos para os lugares. De outro modo, e mostrando-se pouco competitivo em termos remuneratórios, no futuro, para as tarefas mais exigentes ou especializadas, o Estado só conseguirá cativar os medíocres ou os imbuídos de espírito de missão – coisa que, convenhamos, não encaixa bem no quadro de uma sociedade capitalista, de mercado.


Autor: Amadeu Sousa
DM

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4 janeiro 2020