O Verão coloca a imprensa em slow mode. As revistas semanais de informação, como a Sábadoe a Visão, fazem capas com o Alentejo e os jornais diários inauguram as páginas estivais. Como de costume, surgem os inquéritos com perguntas rançosas. A praia preferida, o pesadelo de férias e banalidades do género são os assuntos que se presumem oferecer motivos de interesse para os leitores. Entre o que o jornal iquer diariamente saber dos seus inquiridos, há três questões que exemplificam a inanidade destes interrogatórios: “Quem gosta de seguir nas redes sociais?”; “Ainda usa palhinhas ou cotonetes?”; “Uma boa grelhada mista ou salada de canónigos e afins?”. Pode ser que o calor recomende um uso escasso da zona do cérebro mais dedicada a actividades intelectuais, mas, ainda assim, não deixa de ser sintomático que do inquérito esteja ausente qualquer pergunta sobre livros e leituras de férias.
“Pensa que, para além de não haver muitos leitores, a leitura está a perder terreno neste momento?”, perguntou, há nove anos, também em Julho, a jornalista Ana Gerschenfeld ao ensaísta Alberto Manguel, autor de inúmeras obras sobre leitura (e do extraordinário Dicionário de lugares imaginários) e ex-director da Biblioteca Nacional Argentina. A resposta subsiste actual: “O que está a perder terreno é a inteligência. Estamos a tornar-nos mais estúpidos porque vivemos numa sociedade na qual temos de ser consumidores para que essa sociedade sobreviva”.
O ensaísta é contundente: “E para ser consumidor, é preciso ser estúpido, porque uma pessoa inteligente nunca gastaria 300 euros num par de calças de ganga rasgadas”. Para Alberto Manguel, essa “educação da estupidez” faz-se desde muito cedo, mais precisamente desde o jardim-de-infância. “É preciso um esforço muito grande para diluir a inteligência das crianças, mas estamos a fazê-lo muito bem. Estamos a conseguir destruir aos poucos os sistemas educativos, éticos e morais, o valor do acto intelectual”. As novas tecnologias viriam obviamente à conversa e a perspectiva do ensaísta é, sobretudo, sensata: “Estamos a mudar de objectos quotidianos a um ritmo impressionante. Mas nada disso me assusta, faz parte da nossa realidade. O que me assusta é a nossa utilização desses instrumentos e a falta de liberdade com a que os utilizamos. Estamos a transformar-nos cada vez mais em meros consumidores”. Alberto Manguel considera essencial reflectirmos sobre a questão, porque estamos a perder uma liberdade que define a nossa condição humana.
Explicando que é muito importante sabermos por que usamos ou não uma coisa, partilha a sua experiência singular: “Eu não uso telemóvel, não uso a Internet, não tenhoe-mail, mas é uma escolha, não é uma resistência contra algo que me poderia servir. A mim, essas coisas não me servem. Percebo perfeitamente que um cirurgião, que pode ser chamado de urgência, precise do telemóvel, mas a ideia dessa presença constante, dessa comunicação constante, dessa urgência constante, é totalmente falsa. E nós aceitámo-la – mas espero que consigamos reagir. Já chega, já brincámos com todos esses brinquedos e agora vamos pensar um pouco para saber se realmente precisamos deles”.
Tendo Ana Gerschenfeld notado que houve tempos em que uma pessoa não erudita, mas culta, tinha a obrigação de ter lido certos livros, mas que, hoje, essa ideia parece ter sido esquecida, Albert Manguel constata que a noção de “ser culto” foi abandonada. Agora, afirma o ensaísta, “não passa pela cabeça de ninguém dizer que uma pessoa é culta ou não é culta”. O acto intelectual perdeu prestígio, acrescenta, observando ainda que, hoje, “uma pessoa pode perfeitamente admitir que é estúpida, que passa o seu tempo a jogar jogos de vídeo ou que só se interessa pela moda. Não vai chocar ninguém. Antes, tínhamos vergonha de dizer coisas dessas, mas hoje é realmente espantoso ver o número de pessoas adultas que jogam jogos totalmente imbecis”.
O “anti-intelectualismo” é uma atitude comum. O diário francês Le Mondedatado de anteontem dedicou uma página ao assunto, entrevistando a académica Sarah Al-Matary, que recordou as bases históricas do desprezo pelos intelectuais, que subsiste, vigoroso, como Donald Trump boçalmente ilustra. O desdém tem antecedentes. O escritor anti-semita Louis-Ferdinand Céline, nos anos 30 do século XX, garantia que em França os judeus ocupavam os lugares de poder por apenas eles saberem ler. Sarah Al-Matary conta ainda que Hitler, para não ser desconsiderado, interditou a difusão de qualquer imagem sua que o mostrasse de óculos. Como se vê, há muito boas razões para ler. No Verão ou em qualquer outra estação do ano.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes