O início da semana foi animado pela história de um porco que se tinha ido passear para um supermercado de Alcochete. O animal, segundo os relatos, como o da última página do Jornal de Notícias de segunda-feira, documentado fotograficamente, andou pelo parque de estacionamento e pelo interior do estabelecimento comercial. Derrubou alguns produtos, mas, acrescentaram as notícias, não provocou danos consideráveis.
O porco era realmente um porco. Não era uma metáfora. Não era, também, como outros porcos do mês de Novembro, um rótulo atribuído a certos homens, nem uma personagem de O triunfo dos porcos (Lisboa: Perspectivas & Realidades, 1976), o muito falado, mas pouco lido, romance de George Orwell sobre o estalinismo, abundantemente mencionado durante estes dias em que se lembram os cem anos da revolução russa.
Os porcos do romance encabeçam uma revolta contra os homens que – tirânicos – os exploram; assim como aos outros animais. Ao som do hino “Animais de Inglaterra”, que prometia que “Cedo ou tarde o dia virá, / O homem tirano será destronado / E os produtivos campos de Inglaterra / Serão passeados só por animais”, a revolução triunfa e os novos líderes, os porcos Snowball, Napoleão e Squealer, fundadores do Animalismo, estabelecem orientações básicas, tais como “tudo o que anda com dois pés é inimigo” e “tudo o que anda com quatro patas ou tem asas é amigo”. O regime animalista, inicialmente, apresenta-se promissor.
Os porcos, todavia, ao fim de algum tempo no poder, tornam-se corruptos e despóticos, ditando então o celebérrimo preceito que estabelece que “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Esquecendo a regra da superioridade das quatro sobre as duas pernas, os porcos, agora andando apenas sobre as patas traseiras, convidam os humanos que mandam nas propriedades das imediações para uma visita que servirá para lhes apresentar o sucesso da “Quinta dos animais” (título original da obra) e, sobretudo, como medida de boa vizinhança.
A ocasião será aproveitada para os porcos garantirem que não promoverão qualquer revolta dos animais das outras quintas contra os outrora considerados tiranos de dois pés. O livro termina com uma eloquente constatação feita pelos animais da quinta que observam a confraternização dos antigos inimigos: “Os que se encontravam lá fora olhavam do porco para o homem, do homem para o porco e novamente do porco para o homem, mas era já impossível distinguir uns dos outros”.
Os outros porcos de Novembro não se apresentam menos antipáticos, razão por que em França se tem apelado a que sejam denunciados. O enorme escândalo que colocou no centro das atenções Harvey Weinstein, um importante produtor de cinema dos Estados Unidos da América, acusado de abusos sexuais, fez surgir em França uma singular convocação: “denuncia o teu porco”. E o que começou por ser um hashtag, como tantos outros que se encontram no Twitter, tornar-se-ia, segundo a jornalista e ensaísta Elisabeth Lévy, “o último gadget ideológico da moda”.
Sendo certo que haverá situações de imputações exageradas ou falsas – injustas, portanto –, não é menos verdade que as acusações que se multiplicam todos os dias contra figuras mediáticas, actores, músicos, jornalistas ou políticos, por exemplo, têm sido admitidas por diversos visados, sendo difícil perceber que géneros de repercussões terá este turbilhão de queixas.
Os porcos, de facto, não desfrutam de boa reputação. Não terá sido por acaso que Jacques Brel, numa canção sobre “os burgueses”, escrita em 1961, julgou que o modo apropriado de os insultar seria dizer: “Os burgueses são como porcos, quanto mais velhos mais cretinos…” Se, no início da canção, era o jovem protagonista e os amigos que insultavam os burgueses, dizendo que eles eram como suínos, no fim, são outros jovens que enxovalham o protagonista e os companheiros, já envelhecidos, dizendo que os porcos são agora eles.
Nem todos os porcos são como o do supermercado de Alcochete, que não provocou estragos de maior nos sítios por onde passou e, segundo a imprensa, entusiasmou quem o viu. Muitos não dão sossego e não o parecem ter, como se verifica num extracto de um poema da autoria de um grande escritor britânico, Ted Hughes, intitulado “Visão de um porco”, sobre um suíno morto em cima de uma padiola: “Dei-lhe um murro sem sentir remorso. / Sentimo-nos culpados se insultamos os mortos, / se caminhamos por cima de túmulos. Mas este porco / não estava em condições de culpar ninguém”.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
Um pretexto para falar de porcos

DM
26 novembro 2017