Em 28 de Outubro, na conclusão da Conferência "Re-Pensar a Europa", organizada pela Comissão dos Conferências Episcopais da União Europeia, em Roma, o Papa Francisco proferiu o discurso conclusivo que é extremamente rico e que vamos apresentar em dois momentos.
Regozijou-se pelo facto de o encontro ter sido orientado por um espírito de confronto livre e aberto, pois só assim pode haver enriquecimento mútuo para delinear o caminho do futuro da Europa, isto é, o caminho que todos nós estamos chamados a percorrer em conjunto para superar as crises que atravessamos e enfrentar os desafios que nos esperam.
Tem sentido reflectir no contributo cristão, pois as terras que hoje constituem a União Europeia foram plasmadas no decurso dos séculos pela fé cristã, mas hoje, dada a multiplicidade e pluralidade de culturas e religiões, há quem pense que o cristianismo é apenas um elemento do passado longínquo e estranho aos dias de hoje.
Mais que nunca, vemos, hoje, como São Bento intuiu bem que o que realmente interessa ao ser humano é uma vida com sentido e feliz, algo bem diferente da proposta da cultura clássica greco-romana, e mais ainda a que caracterizou as invasões bárbaras. O homem não é apenas um cidadão (cives) dotado de privilégios a usufruir no ócio; não é um militar (miles) combatente e servidor do poder do momento. E sobretudo não é um (servus), uma mercadoria que se troca, privada de liberdade e destinada unicamente ao trabalho e à fadiga. Para o Padroeiro da Europa, a pessoa não são funções (adjectivos) a desempenhar, mas pessoas (substantivos) que desejam poder usufruir de dias realmente felizes.
O conceito de pessoa, constituída à imagem de Deus, é um dos valores fundamentais do cristianismo. É com base nela que São Bento constrói os mosteiros, que se tornarão, ao longo dos tempos, o berço do renascimento humano, cultural, religioso e económico do continente europeu.
A Europa precisa de ter plena consciência de que, mais do que de números ou instituições, ela é feita de pessoas. Reconhecer que o outro é, antes de mais, uma pessoa, significa que eu devo valorizar o que me une a ele. O ser pessoa liga-nos aos outros, faz-nos ser "comunidade". Nome aliás que os pais fundadores do projecto europeu lhe deram. A comunidade é o maior antídoto aos individualismos que caracterizam o nosso tempo, aquela tendência, hoje difundida no Ocidente, a conceber-se e a viver na solidão. Dá-se um mau entendimento da liberdade, como se ela significasse a obrigação de viver sozinhos, libertos de qualquer obrigação. Isso levou à construção de uma sociedade desenraizada, privada do sentido de pertença e de herança. «E isto, para mim, é grave», diz Francisco.
Os cristãos reconhecem que a sua identidade é, antes de mais, relacional. Estão inseridos como membros de um corpo, a Igreja, na qual, cada um, com a própria identidade e peculiaridade, participa livremente na edificação comum. E «analogamente, tal relação dá-se também no âmbito das relações interpessoais e da sociedade civil. Diante do outro, cada um descobre as suas qualidades e os seus defeitos; os seus pontos fortes e os fracos. Ou seja, descobre o seu rosto e compreende a sua identidade.»
Para um cristão, a família, como primeira comunidade, permanece como o lugar mais fundamental de uma tal descoberta, em que a diversidade é exaltada e, ao mesmo tempo, é re-compreendida na sua unidade. A família «é a união harmónica das diferenças entre o homem e a mulher, que será tanto mais verdadeira e profunda quanto mais for capaz de se abrir à vida e aos outros. De igual maneira, uma sociedade civil será realmente aberta, na medida em que souber acolher a diversidade e os dotes de cada um, e ao mesmo tempo for capaz de gerar novas vidas, mas também desenvolvimento, trabalho, inovação e cultura».
Pessoa e comunidade são os fundamentos da Europa que, como cristãos, queremos e para a qual podemos contribuir para a construir mais sólida e harmónica. As pedras de tal edifício chamam-se: diálogo, inclusão, solidariedade, desenvolvimento e paz.
No próximo texto, desenvolveremos os outros tópicos do contributo cristão: um lugar de diálogo; um âmbito inclusivo; um espaço de solidariedade, uma fonte de desenvolvimento e uma promessa de paz.
Autor: Carlos Nuno Vaz
Um contributo cristão para repensar a Europa I

DM
11 novembro 2017