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Ucrânia, Turquia e Síria

A poucos dias da passagem do primeiro ano da infame invasão da Ucrânia pela Rússia e uma semana depois da catástrofe natural que causou dezenas de milhares de mortes e feridos com o terramoto na Turquia e na Síria, é tempo de reflexão sobre a diferença destes acontecimentos. Este, com uma causalidade não atribuível à mente humana, aquele decorrente dum cérebro tresloucado. Mas são fenómenos que se entrecruzam, se admitirmos que toda a enorme riqueza material que se desbarata na construção de armamento que suporta a guerra, embora se compreenda que os gastos na defesa da Ucrânia se mostram necessários a garantir a soberania do povo ucraniano, sobraria para se ter construído casas e prédios com qualidade e resistência a decorrências sísmicas e, até, avanços científicos na compreensão e solução das próprias catástrofes naturais.

É com cinismo e hipocrisia que Moscovo anuncia o envio de equipas de resgate do Ministério de Situações de Emergência para a Turquia e Síria, embora seja humano que as populações atingidas e em forte sofrimento, bem como os seus presidentes Erdogan e Bashar al-Assad, este um apoiante de Putin, manifestem o seu regozijo por todo o apoio que possam receber. Será crível, in bona fides, que a atual Rússia ditatorial que agride barbaramente uma nação vizinha, que mortifica todo um povo pacífico que em nada contribuiu para ser agredido, destrói as suas habitações e infraestruturas, se dispõe solidariamente a auxiliar outras nações? Ajudas dessas não passam de oportunismo político.

Para além das causas das duas desgraças, a guerra humana e o terramoto natural, a grande diferença é a sua duração. O sismo é imediato, embora seguido de réplicas nos dias seguintes. A natureza estabiliza a causa, ainda que o sofrimento com a perda de familiares, amigos e propriedades se perpetue. Mas a guerra prolonga-se no tempo. Quase um ano passado e continua indeterminada a sua duração.

Putin sabe que não poderá ganhar. Perdeu a sua oportunidade, oBlitzkrieg, o ataque rápido e de surpresa vitorioso, sem tempo de organização da defesa, que se temeu sucederia nos dias iniciais. Mas não contou com a admirável liderança de Volodymyr Zelensky e de todo um povo que não se deixa subjugar. A ditadura russa invocou a vontade de adesão da Ucrânia à Nato como motivo para a invasão, o que não resultou porque quer a organização quer a nação aceitaram que essa integração não ocorreria. Depois veio a historieta da desnazificação da Ucrânia, que não se destinava ao Ocidente, que ignoraria o argumento por ridículo, mas para consumo interno. O desejo da anexação estava consumado, o que importava sempre foi a conquista das riquezas ucranianas e a ampliação de território, como sucedeu com a maior parte das guerras ao longo dos tempos. Agora vem a tática Zhukov, nome do condecorado Marechal russo da II Guerra que ordenava o ataque pela infantaria, à custa de serem dizimados os seus soldados, muitos deles camponeses ucranianos recrutados à pressa.

A força de Zelensky impressiona porque o ocidente prometeu-lhe guarida, aconselhando-o a abandonar o país face à provável derrota. E não seria pusilânime da parte dele, Charles de Gaulle fugiu para a Inglaterra aquando da invasão da França por Hitler, com o argumento nobre que assim poderia organizar a resistência e viria a ser a grande figura política francesa do pós II grande guerra mundial. O mesmo sucedeu aceitavelmente com a família real portuguesa, aquando das invasões napoleónicas. Jorge VI ficou em Londres, apesar dosbombardeamentos alemães, mas no caso não chegou a existir a invasão da Inglaterra.

A salvação prometida do povo ucraniano por Putin é um logro, que aquele rejeita. Nenhum “anschluss” se consegue contra um povo unido. Os agressores chegam e saem, o povo fica, Bento XVI dizia isso mesmo no “Jesus de Nazaré”: “uma sabedoria muito comum da história: os invasores vêm e vão. Permanecem os simples, os humildes, que cultivam a terra e que continuam a semear e a colher entre dores e alegrias”. Aconteceu com as conquistas romanas, o império de Gengis Kahn e tantos outros. Até Maquiavel dizia que um bom líder deve estudar a história dos outros para não repetir os erros deles. Mas a Putin, na sua vã glória, pouco interessa os outros, para ele não existem “próximos”.

E Putin também não ganhará porque, revisitando o pensamento kantiano, a paz universal é a única forma legitima de associação entre países.


Autor: Carlos Vilas Boas
DM

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16 fevereiro 2023