Cada um tem para si uma reserva de pensamento e atitude que nunca partilhará na totalidade. Assim me ensinaram, assim tenho feito; vou verificando que nem eu nem os meus contemporâneos educaram neste sentido de reserva. Os mais novos, principalmente os netos, não se coíbem de expor os seus pensamentos sobre estes temas, tendo criado ambientes sociais pouco agradáveis: onde havia boa disposição de coexistência passou a haver discussões nem sempre amáveis.
Dizem os mais novos que são uma geração diferente, que nunca se esconderão perante as conveniências e preconceitos, que por falta de afirmação nossa é que estivemos em ditadura durante quarenta anos. Se tivéssemos tido a coragem de dizer em vez de calar ou pactuar com o poder, nunca teríamos passado pelo que passamos. Um julgamento destes não só é injusto como carece de ser reposto no tempo em que as coisas se passaram.
A ditadura não estava apenas no poder; começava pela ditadura de casa, onde não era permitido falar, dar opinião, tomar iniciativas, discordar. Aos rebeldes públicos, e sempre os houve, estava reservada a proibição de exercer cargos públicos, ser professor, por exemplo, além de deportações, exílios, prisões, etc. Em casa a rebeldia tinha o preço da bofetada. Esta autoridade enformou a nossa sociedade. Obediência total ao pai, ao chefe, à igreja, ao poder.
Um verdadeiro projeto educativo como nunca mais houve em Portugal. Talvez uma paideia grega à moda portuguesa. Tem semelhanças muito próximas. Mas os novos não se conformavam com a nossa “domesticação” e eu também não me achei na obrigação de lhes dar mais explicações. Num ambiente familiar, escolar e social, onde cada um pode livremente estar em liberdade, é fácil ter-se opinião, divergir; quando se quer fazer de “catequista” é que os ouvintes se revoltam contra o doutrinador.
Uma coisa é termos as nossas ideias, outra bem diferente é querer que os outros pensem como nós; dizer o que pensamos, sem cuidar de saber do melindre que pode causar a terceiros, não é um ato de franqueza ou coragem, é um ato de má educação. Quem entra ou perturba a subjetividade de outros é profano porque profana o templo da subjetividade. Com que autoridade o faz? Mas disse aos mais novos que hoje é muito fácil ser-se “corajoso de palavras e ação” porque a liberdade em que vivemos permite ser-se “herói” com toda a facilidade; difícil é ser-se herói quando se sabe que se pode ser vítima dessa mesma heroicidade.
Eles calaram-se sem convicção, por respeito ao velho, mas não deixei de reparar que havia na reunião alguns adultos que também não concordavam com a minha perlenga e pensei: serão estes pais dos que apanham caneladas em público e dizem que isso é uma afirmação da personalidade de seus filhos? Foi verdade que depois de acabar o assunto do livro de Cavaco Silva, o ambiente voltou à conversa fácil e a velha harmonia, que é filha dileta da boa educação, foi rainha e senhora em todo o serão. Que bom é ser-se cota.
Autor: Paulo Fafe