No Burundi, não se brinca com coisas sérias e muito menos com as canelas do Presidente. Dois dirigentes da equipa de Kiremba foram detidos por «conspiração contra o chefe de Estado». São acusados de não ter zelado pela integridade física de Pierre Nkurunziza, aquando de um jogo futebol ocorrido naquela localidade do norte do País.
A “grave infracção” ocorreu a 3 de Fevereiro, quando a equipa do Presidente (Alleluia FC) – há nomes fadados – afrontava os rivais de Kiremba, que contam nas suas fileiras com jogadores oriundos dum campo de refugiados.
De acordo com a Rádio França Internacional, os reforços congoleses cometeram o crime de lesa-majestade de não se esquivarem a contactos físicos mais rugosos, levando inclusivamente a que Sua Excelência se tenha estatelado uma vez em pleno relvado. Contudo, as regras são claras: quando o Presidente tem a posse da bola, nenhum adversário se deve aproximar a menos de três metros.
Qual Ronaldo das margens do Tanganica, em cada jogo, Pierre Nkurunziza tem obrigatoriamente de marcar um golo ou, pelo menos, estar na origem de uma jogada decisiva. Ao apito final, só pode haver um vencedor, mesmo que para isso seja necessário um prolongamento pela noite dentro.
Já sabe que nem todos batem bem da bola. Ainda esta semana, na Grécia, o presidente do PAOK Salónica invadiu o relvado com uma arma à cinta para protestar contra uma decisão do árbitro.
Em Portugal, supostamente país de brandos costumes, não chegamos ainda a esse extremo, mas para lá caminhamos. Os nossos principais agentes desportivos não só perderam a noção do ridículo, como menosprezam despudoradamente os valores éticos e o quadro legal que deveria pautar o exercício das suas funções.
Tudo, sob o olhar complacente de um poder político que ora finge não ver o que muita gente deveras sente, ora presta inusitada vassalagem aos clubes “grandes”.
Para o quadro estar completo, faltam as turvas relações com a banca, as enigmáticas comissões nas transferências de jogadores, a proverbial ineficácia – para não dizer outra coisa – do sistema judiciário, para além das inenarráveis figuras a que se prestam quotidianamente assessores e comentadores afiliados. Num contexto já de si bem pouco abonatório, salvo raras excepções, a comunicação social instiga um clima de guerrilha institucional e/ou toma descaradamente partido.
Já há pouco jornalismo de investigação em Portugal – para além das estratégicas violações do segredo de justiça –, mas no âmbito desportivo então estamos há muito conversados.
Não basta, porém, zurzir à esquerda e à direita. Temos o futebol que também merecemos, à medida do adepto comum (falar das claques daria um tratado). Escandalizamo-nos cada vez que os adversários são acusados de comportamentos reprováveis, mas defendemos com unhas e dentes atitudes vergonhosas dos nossos dirigentes.
As tradicionais e sadias picardias clubísticas dão cada vez mais lugar a trocas de insultos, achincalhamentos e acusações recíprocas tingidas de má-fé. Com coisas sérias não se brinca… É uma questão de falta de educação cívica que alastra do analfabeto ao doutorado.
O que nos interessa não é a competição desportiva, mas a vitória custe o que custar. O que nos move não é a justiça, mas que o rival seja sempre severamente castigado enquanto o “meu” clube passa entre as pingas da chuva. Somos o país das vitórias imerecidas e dos vencidos injustiçados.
Todos sabemos que o futebol passou a ser um negócio. Para muitos, é cada vez mais uma experiência de alienação colectiva. No Burundi, os adeptos são obrigados a vergar-se a excêntricas normas ditatoriais, em Portugal temos o futebol que merecemos.
Autor: Manuel Antunes da Cunha