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Tartarin de Tarascon na governação

Tarasconé umacomuna francesanaregião administrativafrancês daProvença-Alpes-Costa Azul, onde vive a personagem fictícia Tartarin, que dá o nome ao livro do século XIX de Alphonse Daúde, literatura fresca e agradável, uma boa leitura para as férias de verão. O herói tinha um escritório cheio de livros e uma coleção de armas de todo o mundo, um sonhador, desejoso de viagens de aventuras e glórias, que apesar de rico, nunca tinha saído da terra. Chegou a ter convite para ir a Xangai, mas nunca foi, o que não o impedia de relatar aventuras da viagem e da estadia. Era tão dedicado caçador, que corria atrás dos leões, mas pelos corredores da casa. Quando, por equívoco, finalmente parte numa viagem para a Argélia, onde tudo corre mal, até o único leão que mata é um velho animal sagrado do convento. Mas regressa a casa em apoteose, como um grande matador de leões, trazendo um camelo porque o viu caçar muitos leões!

Alguns governantes comportam-se assim. Não direi que só deste governo, de anteriores pode afirmar-se o mesmo e exemplos no estrangeiro também não faltarão. Mas como a apreciação deve ser atualizada, aparenta que a governação do SNS vem sofrendo do facto da ministra da saúde não ter licenciatura na área, nunca tendo trabalhado como profissional de saúde num hospital ou mesmo num centro de saúde, sendo licenciada em Direito, ainda que Mestre em Gestão e Economia da Saúde e com vários anos na administração hospitalar. Conhece os manuais, mas nunca os vivenciou. Por vezes parece aquela aluna que perguntada pela professora de geografia se sabe onde fica a Inglaterra, responde que está na página 83 do livro.

A situação não é única no panorama nacional – caso de Leonor Beleza e internacional. Quando o Presidente Biden escolheu em 2021 Xavier Becerra para Secretário de Estado da Saúde, a sua opção foi uma surpresa e desencadeou um debate imediato sobre se, como advogado, era a escolha correta para liderar um ministério que supervisiona agências médicas de alto nível, incluindo a Food and Drug Administration, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças e os Institutos Nacionais de Saúde. Os republicanos argumentaram logo que não era qualificado para o cargo.

A substituição do médico Adalberto Campos na pasta da saúde por Marta Temido nunca foi clara aos olhos da opinião pública. O ex-ministro, cuja escolha foi muito elogiada pelo sector da saúde, ter-se-á tornado um ativo tóxico para o próprio PS, pela alegada incapacidade para conter as greves quase permanentes de médicos, enfermeiros e demais profissionais da Saúde, as demissões nas administrações hospitalares, as queixas de falta de investimento no SNS, o problema da aplicação das 35 horas de trabalho semanais, a (não) transferência do Infarmed para a cidade do Porto. Mas o mais certo terá sido a circunstância de não ter ganho o embate com o então ministro das finanças Mário Centeno para obter mais dinheiro para o orçamento da saúde, ficando para a História o momento em que, em pleno Parlamento, o garantiu: “Somos todos Centeno”.

Conhecedor da realidade dos Hospitais por experiência, Adalberto Campos compreendia que sem investimento em equipamento e no aumento dos salários de médicos e enfermeiros, o SNS claudicaria. A atual ministra aparece por se tratar de uma executiva da confiança de António Costa, mais obediente e capaz de aceitar uma política de cortes no setor. Num momento em que o PS precisava do apoio parlamentar do Bloco de Esquerda para se manter na governação, não teve problema em corporizar a péssima decisão de acabar a parceria público-privada no Hospital de Braga, com as desvantajosas consequências a que estamos a assistir, com a diminuição dos padrões de qualidade que antes possuía e cuja face mais visível é o encerramento regular das urgências de ginecologia e obstetrícia e da cirurgia pediátrica.

Marta Temido revelou alguma capacidade política na gestão da pandemia, respaldada pelo primeiro-ministro. Mas pouco tempo depois do início do novo mandato, revela um impressionante desgaste e uma incapacidade para controlar os problemas do sistema público de saúde, assistindo-se a uma permanente saída dos médicos do público para os hospitais privados, uma consequência manifesta do desinvestimento na saúde.

Se eu gostava de ter um médico a ministro da justiça, respondo que não. Compreendo que os profissionais de saúde pensem o mesmo de um jurista a governar a sua área.


Autor: Carlos Vilas Boas
DM

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20 julho 2022