Surpreendente Jesus de Marcos – 8 Quem é mesmo o verdadeiro discípulo?

Jesus está a passar a última semana da sua vida em Jerusalém, antes de ser entregue à morte e ressuscitar. No evangelho de amanhã – o 32.º Domingo –, o olhar de Jesus vai para uma pobre viúva que deita na caixa das esmolas do templo as duas únicas mais pequenas moedinhas que possuía. Jesus diz que foi ela quem, de entre todos os presentes, maior esmola deu, porque ofereceu tudo o que tinha para viver. Os outros deitaram em maior quantidade, mas apenas um pouco do que lhes sobrava. Ela deitou tudo o que possuía. Verdadeiro discípulo de Cristo não é o que dá um pouco do que lhe sobra, em bens, tempo, disponibilidade, compromisso, mas o que se entrega totalmente e tudo deixa para O servir, começando pelo tempo de oração que lhe dedica cada dia. A esta luz, é impossível que não encontremos em nós amplas zonas de apego ao que temos e somos, das quais só poderemos ir saindo com muita humildade, e com pedido de ajuda e total confiança naquele que em nós tudo pode: Jesus Cristo. Não é por mera coincidência que o Papa Francisco insiste tanto em que a principal obra de apostolado é a oração, porque os primeiros a ser evangelizados de verdade temos de ser cada um de nós. Sem nos deixarmos, primeiro, evangelizar, não poderemos ser verdadeiros evangelizadores. Os problemas da Igreja não se resolvem com bonitos discursos e reflexões de alto quilate teológico e pastoral. Menos ainda com opiniões debitadas ao acaso, sem o mínimo diálogo íntimo com o Senhor e sem interacção serena e empática com os outros. As redes sociais estão já cheias de propostas e de pretensos inquéritos a preencher, havendo já também quem apresentou resultados das respostas a alguns deles. Não vale a pena querermos queimar etapas e tentar ousar propostas ditas «revolucionárias», só porque acompanham a onda de todos quantos pensam que a reforma da Igreja resultará apenas da modificação de certas normas e estruturas. A verdadeira revolução começa no coração de cada um, na medida em que se põe à escuta do que o Espírito diz à sua Igreja. E só depois o confronta com o que os outros também escutaram. Com razão afirma o Papa Francisco que «o Sínodo é um caminho de discernimento espiritual e de discernimento eclesial que se faz na adoração, na oração, em contacto com a Palavra de Deus». Senão, cada um vai por si, mas não estará realmente a caminhar juntamente com os irmãos e a discernir o que o Espírito quer para a Sua Igreja. Recordando o Evangelho do domingo anterior, o do 31.º domingo, há muita gente que se julga mestre, como era o escriba que pergunta a Jesus qual o «primeiro de todos os mandamentos», sem se ter dado ao trabalho de tirar as conclusões óbvias do referido nos livros da Lei. Não deveriam restar dúvidas de que Mc 11, 30: «Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças» é citação de Dt 6,5 com o acrescento «com todo o teu entendimento» e a junção de «O segundo é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo». Com tal acrescento e junção, Jesus faz uma interpretação da globalidade da Lei Moisaica, unindo num só, dois preceitos vertidos em livros distintos: Dt, 6, 5 e Lv 19,18b. Dt 6, 6-9 enfatiza que tais mandamentos devem estar no coração de cada crente; devem ser repetidos aos filhos, e objecto de reflexão, quer estando sentado em cada, quer caminhando; ao deitar e ao levantar. Mais: «Atá-los-ás como símbolos no teu braço e usá-los-ás como filactérias entre os teus olhos»; escrevê-los-ás sobre as ombreiras da tua casa e nas tuas portas». Será possível não enxergar onde está o principal mandamento da Lei? Do amor a Deus, de certeza que não era possível duvidar. Mas o mais difícil era compreender que o amor a Deus era inseparável do amor aos irmãos, e que só a vivência deste amor revela a verdade do amor a Deus. O amor a Deus, sem gestos de amor concreto aos irmãos, é mero culto e especulação. Como bem refere o guião do ano pastoral da Arquidiocese: «Onde há mor, nascem os gestos».
Autor: Carlos Nuno Vaz