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Surpreendente Jesus de Marcos – 4

Proclamados os textos do capítulo VI de João sobre o Pão da Vida – domingos XVII a XXI –, retomamos o evangelho de Marcos a partir do capítulo 7.º, meditando, no XXII domingo, sobre o que realmente torna imputo o ser humano – o seu coração e o que dele sai; no XXIII, Mc 7, 31-37 sobre a cura do surdo que mal podia falar, alertando-nos para o facto de que o primeiro serviço a prestar ao Senhor é o da escuta da sua Palavra. Se não soubermos escutar, perdemos a capacidade de falar e não conseguimos tocar o coração de ninguém. Talvez que a afasia da Igreja, esta incapacidade de atingir verdadeiramente o coração das pessoas, tenha muito que ver com o facto de que não sabemos escutar, nem criamos condições para escutar: Deus e o homem.

Só sabe falar quem sabe escutar. Há um surdo-mudo em cada um de nós. Por isso devemos pedir sem jamais nos cansarmos: «Dá-nos, Senhor, um coração que escuta. Então nascerão pensamentos e palavras que sabem a céu». (Ermes Ronchi).

Amanhã (12/09), XXIV domingo, entramos em cheio no cerne do Evangelho de Marcos (8, 27-35). Para o compreendermos profundamente, devemos ter em conta os versículos antecedentes, 22 a 26, sobre a cura do cego de Betsaida. É o encontro pessoal com Jesus, que lhe põe saliva nos olhos e lhe impõe as mãos, que o faz «ver perfeitamente» e «até de longe conseguia ver claramente todas as coisas». Sem este encontro pessoal, cara a cara, mãos nas mãos e olhos nos olhos com Jesus, não enxergaremos bem quem Ele é e quem são os outros para nós.

Jesus interroga os discípulos sobre o que eles dizem que Ele é. Pedro faz uma confissão verdadeira: «Tu és o Messias», mas subentende um Messias triunfador e não um Messias sofredor. Diz o texto: «Jesus começou a ensinar-lhes que o Filho do Homem tinha de sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, os sumos sacerdotes e os escribas; de ser morto e ressuscitar três dias depois». Perante estas palavras de Jesus, Pedro contesta vivamente. Jesus, virando-se e olhando para os seus discípulos, repreende Pedro duramente: «Vai para trás de MIM, Satanás, pois não tens em consideração as coisas de Deus, mas as dos homens». (Tradução de D. António Couto e também de Secundino Sánchez, 225). E esta expressão: « Vai para trás de Mim», isto é, põe-te a seguir o caminho que que eu estou a trilhar, é utilizada por Marcos apenas esta vez.

Desta forma, Jesus coloca todos os discípulos no verdadeiro seguimento. A Pedro identifica-o com Satanás, quem O tentou no deserto. Mas Jesus diz a Pedro que quem marca a direcção é Jesus e não ele.

Nos versículos 34 a 37, faz-se de novo o convite aos discípulos e à comunidade para que façam este seguimento de Jesus.

Este texto mostra-nos um Pedro e uns discípulos que: «nos anos 30, não entendem nada, ou que inclusivamente aproveitam a ocasião para propor novamente a Jesus a tentação zelota. Mas já tinham passado 40 anos, e, agora, Pedro é um personagem venerado pela comunidade de Roma. Até ao ano 64, viveu no meio deles. Muitos viram a sua execução... Viram-no carregar com a cruz do seu Mestre. Na sua juventude, 'não entendeu', mas 'seguiu', 'foi discípulo' e por fim chegou a entender. Inclusive, como Jesus, foi executado por motivos políticos». (F. Riera / Figueras, Jesús, 147).

'Negar-se a si mesmo' significa orientar a vida pelos critérios do Evangelho, vertidos nas palavras e nas atitudes de Jesus. É não seguir o critério mundano, não pensar apenas como os outros; não fazer do 'eu' o centro de pessoa, mas colocar Deus no centro de tudo. É preciso renunciar aos próprios gostos e desejos pessoais para adoptar os de Cristo, como Ele fez em Getsémani, renunciando à sua vontade para fazer a do Pai. A segunda condição é tomar a sua cruz, isto é, viver a obediência até às últimas consequências: «obedecendo até à morte e morte de cruz». (Fil, 2, 8)

Cristo expõe a sua mensagem com toda a clareza. É como que um novo começo do Evangelho, um começo surpreendente. «Jesus actua de outra maneira. Não se dirige às massas que não conseguiam entender. Nem fala em parábolas ou de maneira obscura: 'expõe abertamente a sua mensagem' e dedica-se principalmente a formar os seus discípulos. Já não faz milagres». (F. Riera/ Figueras, Jesús, 144). Ontem como hoje, o desafio, o milagre a realizar cada dia é o de formar verdadeiros discípulos de Jesus.


Autor: Carlos Nuno Vaz
DM

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11 setembro 2021