1. Na minha vida particular venho celebrando o Mês das almas com apoio do livro de Manuel Morujão «Unidos aos nossos irmãos defuntos».
Fez-me refletir sobre a decisão a tomar relativamente a um conjunto de devoções tradicionais: suprimi-las pura e simplesmente ou atualizá-las? Pôr de parte livros piegas que mais deformam do que formam, substituindo-os por outros, sempre fiéis à Doutrina, mais arejados e em conformidade com os tempos em que vivemos, ou não fazer nada?
O livro de Manuel Morujão pode, na minha perspetiva, abrir caminho.
2. Estou persuadido de que as devoções tradicionais são para conservar, purificando-as. À semelhança do que fez em 1974 Paulo VI, com a Exortação Apostólica «Marialis Cultus», destinada à «reta ordenação e desenvolvimento do culto à Bem-Aventurada Virgem Maria».
Por exemplo: antes da reforma litúrgica do Vaticano II rezava-se o Terço (que é uma parte do Rosário) durante a Missa. Na referida Exortação Apostólica, recomendando a recitação do Rosário, uma oração evangélica de orientação profundamente cristológica, Paulo VI escreveu ser um erro recitá-lo durante a ação litúrgica. Cada coisa no seu lugar e no seu tempo.
3. Ensinou o Vaticano II no n.º 13 da Constituição Sacrosanctum Concilium:
«São muito de recomendar os exercícios piedosos do povo cristão, desde que estejam em conformidade com as leis e as normas da Igreja, e especialmente quando se fazem por mandato da Sé Apostólica.
Gozam também de especial dignidade as práticas religiosas das Igrejas particulares, celebradas por mandato dos Bispos e segundo os costumes ou os livros legitimamente aprovados.
Importa, porém, ordenar essas práticas tendo em conta os tempos litúrgicos, de modo que se harmonizem com a sagrada Liturgia, de certo modo derivem dela, e a ela, que por sua natureza é muito superior, conduzam o povo».
4. Comentando este texto Paulo VI escreveu na Marialis Cultus:
«Norma sapiente, esta, e simultaneamente clara; a sua aplicação prática, no entanto, não se apresenta fácil, sobretudo no campo do culto à Virgem Santíssima, tão variado nas suas expressões formais.
Tal aplicação exige, na realidade, da parte dos responsáveis pelas Comunidades locais, esforço, tato pastoral e constância; e da parte dos fiéis, prontidão para aceitar orientações e propostas que, promanando embora da genuína natureza do culto cristão, muitas vezes comportam a mudança de usos inveterados, nos quais aquela natureza, de algum modo, se havia obscurecido.
Aqui neste ponto, continua Paulo VI, quereríamos fazer alusão a duas atitudes que poderiam, eventualmente, tornar vã, na prática pastoral, a sobredita norma do Concílio Vaticano II:
Em primeiro lugar, a atitude de alguns a quem está confiada a cura de almas, que, aprioristicamente, desprezam os exercícios de piedade, se bem que recomendados pelo Magistério quando feitos na forma devida; e por isso, transcuram-nos e criam um vazio que não providenciam a preencher de nenhuma maneira. Ora, estes que assim procedem esquecem que o Concílio diz que se harmonizem os exercícios de piedade com a Liturgia e não que se suprimam simplesmente.
Em segundo lugar, lembramos a atitude daqueles que, à margem de um são critério litúrgico e pastoral, misturam ao mesmo tempo exercícios piedosos e atos litúrgicos, em celebrações híbridas. Acontece, algumas vezes, que na própria celebração do Sacrifício Eucarístico são inseridos elementos que fazem parte de novenas ou de outras práticas piedosas, com o perigo de o Memorial do Senhor não constituir o momento culminante do encontro da comunidade cristã, mas ser como que a ocasião para algumas práticas devocionais.
Àqueles que assim procedem quereríamos recordar que a norma conciliar prescreve que se harmonizem os piedosos exercícios com a Liturgia e não que se confundam com ela.
Uma ação pastoral esclarecida, pois, deve, por um lado, saber distinguir e acentuar a natureza própria dos atos litúrgicos; e por outro lado, saber valorizar os piedosos exercícios, para os adaptar às necessidades de cada uma das comunidades eclesiais e torná-los preciosos auxiliares da mesma Liturgia».
5.Em conclusão: também no que respeita a certas devoções tradicionais é muito mais fácil destruir do que construir.
Autor: Silva Araújo