Vem esta crónica a propósito da representação da peça Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, no Theatro Circo, no dia 26 de novembro, segundo uma coprodução do Teatre Nacional de Catalunya e do Teatro Nacional S. João. Foi com alguma resistência moral que decidi ver o espetáculo, porque não tinha gostado do romance – não tanto pelo facto de o narrador se ter servido de uma epidemia para construir uma metáfora sobre a maldade humana, mas por ter usado processos excessivamente grotescos para atingir os seus propósitos literários.
José Saramago tinha dito que o seu novo romance «são trezentas páginas de constante aflição», no qual se descreve «uma longa tortura» que faz com que estejamos diante de «um livro brutal e violento.» Quando li a obra senti realmente todo o peso dessa ficção negra e negativista; mas quando vi grande parte da versão cénica dessa famosa e polémica obra, referida antes, confesso que me senti esmagado por toda uma sucessão de cenas marcadas pelo mais baixo grau de degradação humana, expressa, nomeadamente, na epidemia em si mesma, no ato mafioso, no egoísmo feroz, no assassinato, no sexo alienado…
O sexo, enquanto parte do discurso teatral, envolveu praticamente todas as personagens do drama, numa clara violação de uma «regra» que nunca fez parte da tradição teatral: sexo em palco, ainda que simulado. Para agravar essa transgressão canónica, digamos assim, uma das cenas foi simulada com tal realismo, que a relação sexual pareceu verdadeira aos olhos do espetador. E uma outra que se seguiu, numa orgia imposta pela lei dos mais fortes, não andou longe do mesmo registo, porque foi interpretada segundo os códigos corporais e verbais próprios do ato sexual (orgasmo incluído).
A psiquiatria explica a prática do sexo (forçado ou consentido) em grupos humanos confinados em espaços-limite, como a enfermaria-prisão onde os cegos se viram compelidos a lutar pela sobrevivência física. Sabe-se que em cenários de promiscuidade e desespero é impossível conter a pulsão libidinosa, por razões essencialmente instintivas. Porém, este tipo de sexualidade pervertida, independentemente do seu contexto sociológico e do valor da mensagem que lhe esteja associada, dificilmente pode ser abordada de forma aceitável por uma arte cuja natureza intrínseca integra no seu corpus comunicacional a inteligência e a sensibilidade do espetador.
Se fizéssemos um paralelo entre o teatro, o cinema e a literatura, veríamos que o teatro é a arte que menos suporta a violência, seja ela física ou psicológica. Quando se lê um livro, o leitor pode avançar um capítulo de que não goste e encontrar o fio da narrativa mais à frente; ou, então, pode abstrair-se do discurso e relativizar livremente as situações vividas, pois não está a ver nem a sentir as personagens, somente a imaginá-las. Operação diferente se verifica quando se vê um filme, cujas imagens virtuais são projetadas numa tela, porque o espetador tem de ativar os seus sentidos para as ver e sentir. A comunicação nesta arte faz-se de modo unidirecional e diferida, do emissor para o recetor, sem possibilidade de retorno. O espetador vê o ator, mas o ator não vê o espetador.
Já no teatro a comunicação é bidirecional – circula nos dois sentidos – e a relação que se estabelece entre o ator e o espetador é direta e imediata, sem a interposição de meios assessórios como o livro ou o equipamento técnico que permite a projeção do filme. Para tanto, o espetador e o ator têm de ocupar o mesmo espaço físico e experienciar o mesmo tempo cronológico, concretizando o tão celebrado milagre do encontro do eu com o outro, ou a fusão do todo numa alma comum. Esta característica da concomitância escapa à literatura e ao cinema, artes que suportam elevados índices de violência. Não o teatro! E o teatro, sempre que aceita a violência da literatura e do cinema, perde a sua identidade e torna-se parecido com artes que lhe são estranhas. O erotismo cabe perfeitamente no teatro, não a obscenidade alarve ou a pornografia demencial, porque o público presente na sala tem dificuldade em interagir com atos que pertencem à esfera da sua intimidade, como é o caso da relação sexual.
Deixemos, pois, o sexo para a literatura e o cinema (televisão, internet, etc.…) porque, para alienação, já basta assim!
Autor: Fernando Pinheiro