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Serenamente Também o motorista

1. Contam os autores do livro «D. António Ribeiro Patriarca de Lisboa», os jornalistas do «Diário de Notícias» (DN) José António Santos e Ricardo Saavedra:

«Fora um domingo de canícula, termómetros a rondar os 30 graus.

Passava das sete da tarde quando chegámos ao Patriarcado, no Campo dos Mártires da Pátria. A intenção era agradecer a D. António Ribeiro a oportunidade que nos dera de o acompanhar por terras do Oeste, e despedirmo-nos. Mas ele fez questão. Tínhamos de entrar para uma bebida. O motorista doDN, discretamente, começou a afastar-se. E o Cardeal insistiu: o convite também o incluía.

Enquanto explicava que, aos domingos, o Patriarcado fica quase vazio, sem pessoal, foi-nos conduzindo por escadas, corredores e salas, a abrir e a fechar as portas, a dar passagem, até à divisão onde, em privado, toma as suas refeições. Uma vez aí, deixou-nos escolher, embora recomendasse um vinho do Pico e um bocado de queijo, que o Senhor Bispo dos Açores lhe trouxera na véspera. Aceitámos, sem rodeios. E D. António dirigiu-se ao louceiro, retirou uns copos de pé alto. Notou-se a sua falta de jeito ao tirá-los ao acaso, os primeiros que lhe vieram às mãos, de tamanhos diferentes. Depois, com elogios ao vinho, serviu-nos.

A conversa aconteceu solta, descontraída. Nem os jornalistas nem o Bispo de Lisboa estavam mais em serviço. No final, com a mesma lhaneza, conduziu-nos à porta. E esperou que o nosso carro partisse, para a última saudação. Foi então que o motorista doDNquebrou o silêncio estupefacto: ‘Sempre me queixei de que ganho pouco. Mas esta profissão, às vezes, traz compensações como a de hoje. Nunca me hei-de esquecer do convívio e de que fui servido pelo Senhor Cardeal-Patriarca de Lisboa’».

2. Fala-se muito em igualdade, mas atua-se, muitas vezes, como se nem todas as pessoas fossem iguais. Fazem-se discriminações baseadas, também, na profissão que as pessoas exercem.

A verdade, porém, é que todos somos iguais e diferentes. Iguais, porque possuidores da mesma dignidade de seres humanos e de filhos de Deus. Diferentes, porque cada um tem o seu feitio, a sua forma de ser, a sua maneira de pensar. Até as suas manias que, mesmo não prejudicando os outros, não tem o direito de impor a ninguém.

Estas diferenças, que são de respeitar, não devem ser motivo para que uns sejam tratados como mais iguais que outros. Embora isso aconteça com muita frequência.

3. Tenho o hábito de cumprimentar as pessoas encarregadas da limpeza das ruas sempre que me cruzo com elas. Faço-o com plena consciência e como sinal de reconhecimento pelo serviço que prestam à sociedade.

Não há trabalhos indignos. Pode haver – e há, até entre pessoas altamente encartoladas – trabalhos exercidos indignamente. Mas mesmo neste caso, a indignidade com que o trabalho é exercido não contribui para que quem o executa seja visto como menos pessoa. Rejeitar o erro e respeitar quem erra deve ser a norma.

Na perspetiva cristã a pessoa tanto se santifica a trocar a toalha do altar como a mudar a fralda do bebé ou do idoso. Ambos os trabalhos são necessários, são dignos, são caminho de santidade, devem ser reconhecidos.

4. O serviço, sendo particularmente vocação de todo o discípulo de Jesus(Ele deu o exemplo quando pegou na toalha e na bacia) é missão de todos. Todos devem saber servir e ser servidos.

Servir com perfeição, com simplicidade, com bons modos, sem esperar recompensa. Fazer o bem sem olhar a quem.

Saber ser servido. Sem esquisitices. Saber reconhecer o trabalho que lhe prestam. Saber dizer, não apenas com palavras,obrigado, por favor, com licença, desculpe. O facto de se compensar monetariamente a pessoa que serve não dispensa quem é servido de ser atencioso e delicado. O dinheiro não justifica a grosseria.


Autor: Silva Araújo
DM

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14 julho 2022