As eleições legislativas de 6 de outubro passado foram marcadas por dois factos sociopolíticos que mereceram alguma atenção da comunicação social, mas, que eu saiba, nenhum esclarecimento por parte da mesma. Um dos factos ocorridos era expectável, o outro, porém, estava completamente fora das cogitações, não só da opinião pública como dos politólogos que costumam analisar a realidade política em Portugal. Comecemos pela abstenção, que subiu até uma percentagem nunca dantes verificada, numa ordem de grandeza que já faz desta omissão cívica uma estrutura do nosso sistema político, porquanto as cifras das últimas eleições legislativas dão resultados próximos dos 50% de abstinentes. Alguém se deu ao trabalho de pensar nas razões que levam um cada vez maior número de portugueses a não votar em eleições livres? Porque é que eles se desinteressam da ação política? De quem é a culpa?
Vejamos, agora, o outro facto que agitou, de modo brusco, uma certa “tranquilidade” partidária portuguesa, porque se assistiu à eleição de um deputado do Chega (André Ventura), e outro do Iniciativa Liberal (Cotrim de Figueiredo), que foram dados como partidos à direita do CDS. O número dos portugueses que votaram nestes dois partidos totalizou 135.507, valor que deu a cada uma destas forças políticas 1,29% dos votos entrados nas urnas. Ora, o que levou 135.507 portugueses a votar em partidos rotulados de direita ou de extrema-direita, apesar de o Chega se considerar liberal e conservador, e de o IL se declarar anti-estatizante e anti-socializante?
Dado que não ouvi qualquer explicação sociológica para esta radicalização à direita do eleitorado português, deu-me para refletir na súbita entrada de um novo pensamento radical no Parlamento. Li os manifestos eleitorais de um e de outro partido e respiguei algumas das suas linhas de força. No caso do Chega, no capítulo Vida, Família e Educação, podem ler-se medidas contrárias ao financiamento do aborto, da mudança de sexo, e propostas para o “fim da promoção estatal de incentivos que institucionalizem os casamentos homossexuais”, para a “proibição dos ventres de aluguer, etc. O IL, quanto aos temas fraturantes, é vago e ambíguo, porquanto apenas defende a “liberalização na legislação sobre direitos individuais”.
Desde logo, o programa do Chega trouxe-me ao espírito a célebre lei da unidade dos contrários (Heraclito), que explica que os contrários tendem a tocar-se em oposições dialéticas. Aplicada a lei à nossa experiência política, verificamos que o Parlamento, nas últimas décadas, tem aprovado leis no domínio dos costumes e dos direitos, liberdades e garantias individuais, como o aborto (2007); casamento homossexual (2010); mudança de género (2018); procriação medicamente assistida (2016), lei que tem tido uma vida atribulada de vetos, chumbos e emendas; e já se discute a legalização da eutanásia, da liberalização das drogas…
Significa isto que o Parlamento tem dado expressão legislativa a uma ideologia que tem sido umas das principais bandeiras dos chamados partidos de esquerda, confrontados com a crise política do socialismo de base marxista, porque o mundo se tornou capitalista, com algumas exceções conhecidas. As democracias contemporâneas, tendencialmente liberais, têm-se orientado no sentido da concessão ao indivíduo de direitos que estiveram proibidos pelas administrações estaduais conservadoras, como sejam o aborto, o casamento homossexual, a mudança de género, a eutanásia, a liberalização das drogas, da prostituição, etc. Mas se há setores da sociedade que se inclinam para a aceitação desta nova moral do Estado, também há setores que são radicalmente contra a subversão legal de um quadro socio-antropológico que, durante séculos, teve na moral tradicional uma das suas principais expressões.
Usando o método da dedução lógica, poder-se-á concluir que, se o estrato mais conservador da sociedade portuguesa está concentrado no CDS e no PSD, tudo aponta para que estes dois partidos tenham, eventualmente, perdido 135.507 eleitores para o Chega e para o IL, por não terem sido capazes de capitalizar, ou de acompanhar, o sentimento político destes portugueses que têm o direito de discordar da cultura ideológica e legislativa que tem dominado o Parlamento nos últimos anos. No caso do Chega, parece-me claro que a sua entrada na Assembleia da República se fica a dever a uma reação contra a ideologia fraturante das maiorias parlamentares que têm aprovado as novas leis do país.
É um facto que, passado o estado de graça da democracia portuguesa, entrou em cena um certo pragmatismo populista e, até, demagógico, que tem incrementado o dissenso ideológico, desviado o legislador do bem comum e baixado o nível do discurso político. A única maneira de evitar esta “entorse” democrática é o cabal esclarecimento da opinião pública, sobretudo quando os assuntos são fraturantes e complexos, como os que acabaram de ser elencados. Todo o cidadão tem o direito de ser esclarecido. Para isso paga, e não é pouco!
Os partidos, porém, não o têm feito, e essa poderá ser uma das razões do afastamento dos portugueses da política. Ora, a democracia é o poder do povo, e os políticos são seus representantes. Se um dia os políticos se tornassem todos profissionais (como Pedro Santana Lopes chegou a admitir a uma das nossas televisões), o povo ficaria afastado da política, e, nesse momento, a democracia acabava. Nasceria outro regime, para o qual seria preciso criar uma nova nomenclatura, depois de monarquia, república, império, democracia… Mas qual?
Autor: Fernando Pinheiro