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SERÁ A REGIONALIZAÇÃO UM EMBUSTE? (II)

É verdade que, ao longo da sua história, Portugal não conheceu exemplos evidentes de poder de reivindicação ou de identificação regional, como afirma António Barreto (AB) – a forte e arreigada tradição foi sempre o centralismo do Estado. No entanto, como deixei vincado na semana passada, na 1ª parte deste meu artigo, desde os primórdios da nacionalidade, houve no nosso país divisões administrativas, judiciais e militares supraconcelhias, fundadas em razões geográficas, físicas, económicas, sociais e idiossincráticas que, por exemplo, justificaram a existência constante até ao liberalismo, de cinco ou seis grandes comarcas e (ou) províncias – Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Entre Tejo e Guadiana e (o reino) do Algarve –, presididas por magistrados de nomeação régia, mas desprovidas de poderes autárquicos e, no caso das províncias, com um mero significado histórico-corográfico.

Com a monarquia constitucional, as províncias lograram obter consagração de estatuto autárquico, como entidades supramunicipais. Efectivamente, em 1932, na sequência da acção legislativa de Mouzinho da Silveira, foram criadas oito províncias: Minho, Trás-os-Montes, Douro, Beira Alta, Beira Baixa, Estremadura, Além-Tejo e Algarve.

Todavia, esta divisão administrativa não vingou, pelo que, em 1835, foram criados 17 distritos, com uma dupla configuração: autarquias locais, de carácter supramunicipal; e circunscrições administrativas (governos civis), chefiadas por magistrados de nomeação régia. Com muito pouca descentralização e com um espírito democratizante que, em determinados períodos, foi coexistindo com uma tutela administrativa forte e uma excessiva governamentalização daquele magistério, a divisão distrital atravessou a I República e o Estado Novo (durante o qual, até 1959, subsistiu apenas como circunscrição administrativa, uma vez que o Código Administrativo de 1936/40, restaurou nesse período a divisão provincial – 11 províncias – como autarquia local), persistindo mesmo enquanto tal durante o regime abrilista até à aprovação da Constituição da República de 1976, após o que ainda vingou, mas apenas como mera circunscrição administrativa, até 2011.

Ora, se há ensinamento que da história pátria podemos colher é o de que todas as experiências de descentralização administrativa regional levadas a cabo a partir da revolução liberal falharam por falta de vontade política: poucas atribuições e competências e um regime financeiro próximo da indigência.

O problema não residiu, pois, na questão do mapa ou do número das regiões (grandes ou médias, horizontais ou verticais, naturais ou económicas, heterogéneas ou homogéneas) nem tampouco da existência ou não de sentimentos de pertença e de identidade dos cidadãos de cada uma delas – em qualquer das cinco ou seis grandes comarcas ou províncias da monarquia tradicional, como das oito ou onze províncias da monarquia constitucional ou do Estado Novo, tal como, aliás, nos dezassete distritos do liberalismo e da República, lobrigam-se, em maior ou menor medida, factores identitários, afinidades históricas, geográficas e etnográficas, usos, costumes e folclores comuns e até pronúncias linguísticas próprias. No passado, como no presente, o grande entrave da regionalização administrativa do continente foi sempre o centralismo estadual. Esta é que é a questão basilar da descentralização de cunho regional.

De resto, não se tratando da institucionalização de regiões políticas autónomas, como os Açores e a Madeira, mas de meras regiões administrativas, os factores identitários e os sentimentos de pertença que hão-de estar presentes na designação e delimitação dos respectivos territórios não terão de ser tão intensos quanto naquelas.

Aliás, penso que a solução do modelo de regionalização a adoptar há-de buscar-se nas linhas conceptuais e nas políticas territoriais com que a própria CRP o arquitectou, desde logo quando começou por estatuir que a área das regiões devia corresponder às “regiões plano”.

Com efeito, apesar das revisões de que foi objecto, a CRP continuou a atribuir ao território regional, nomeadamente no âmbito das políticas públicas de planificação da organização económica e do ordenamento do território e urbanismo, uma importância fulcral, impondo ao Estado, entre outras incumbências prioritárias, a de garantir e promover a coesão económica e social de todo o território nacional, orientando o seu desenvolvimento no sentido de um crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões e de “eliminar progressivamente as diferenças sociais e económicas entre a cidade e o campo e entre o litoral e o interior”. E incumbindo também as regiões administrativas de elaborar planos regionais e participar na elaboração de planos nacionais.

Muito embora a CRP tenha abandonado a referência explícita ao dever de correspondência entre as regiões administrativas e as regiões-plano (hoje constituídas pelas cinco CCDR existentes – Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve) e remetido a solução do modelo territorial para a lei e para a consulta popular directa, é para mim evidente, pelas razões antes apontadas, que continua a transparecer do texto constitucional a preferência pela coincidência das regiões com o território das actuais CCDR, ou seja, pelo modelo das grandes regiões económicas, horizontais ou heterogéneas.

O desafio decisivo é, pois, o de vencer o centralismo, como ainda agora se está a verificar com o processo de transferência de competências da administração central para as autarquias locais e entidades intermunicipais, no âmbito do desenvolvimento da Lei-Quadro da Descentralização. E, neste caso, estamos a falar de transferências de meras tarefas ou encargos, isto é, de competências que não envolvem poderes de planeamento, decisão e execução de políticas sem a dependência do poder central. Imagine-se agora o que seria se o que estivesse em causa fosse o financiamento das regiões administrativas nas diversas áreas que a Lei-Quadro da Regionalização lhes atribui!

Percebem agora os meus estimados leitores porque é que o embuste não está na regionalização que urge, mas no centralismo que tarda a ser erradicado?

Concretizar em 2024 o último ponto que falta cumprir da Constituição de 1976 não seria a melhor forma de comemorar o cinquentenário do 25 de Abril?


Autor: António Brochado Pedras
DM

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10 junho 2022