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Saquito de plástico

Era um cair de tarde escaldante como têm estado as últimas deste outono de verão. Na varanda donde chego ao horizonte e nele se recortam o Sameiro e o Bom Jesus, testemunhos evidentes desta cidade devota, deixando que o sol em últimos revérberos tinjam de cor branda os cimos e desenham no pavimento sombras trémulas, vi, nessas sombras, um velho conhecido de há muito.

Caminhava, ou melhor, arrastava os pés numa progressão de centímetros e, a custo, trilhava a pequena subida que o levaria à sua residência. Os pés mal sustentavam os sapatos que lhe saíam dos pés por magros que se tornaram.

Saquito de plástico na mão trémula, talvez trazendo uns filetes de peixe para o jantar, parando a cada meia dúzia de arrastos, deu-me vontade de chorar por este fim trágico, trágico porque sem alvoradas e pôr de sois que nunca voltarão a aquecer esta vida que já não vive. O homem que apenas vive porque respira, apenas se arrasta com aqueles pés que já não caminham, na verdade não vive, apenas respira. Tinha mulher.

Onde está? Num lar onde arrumou o corpo. E quem arruma os afetos que em tempos ambos trocaram entre eles e seus próximos? Onde estão os abraços dos amigos, os carinhos dos filhos, o encontro das festas de ano? No lar? Não, no Lar está o corpo que precisa de fraldas como quando era menina.

Na limpeza das intimidades por estranhos onde não mora o amor, a amizade, apenas aquele gesto feito de deveres; os seus sentimentos têm a facilidade de fugir da prisão do corpo e conseguem, às vezes, ser novamente ela, como era quando foi menina e moça. Pode remediar-se tudo, ganhar espaço para o resto da vida, mas não há lugar ou gaveta onde se arrumem os sentimentos experimentados numa vida partilhada.

Cada lugar conta-lhe uma história, cada espaço vazio é-lhe uma evocação, cada palavra uma lembrança onde cada luar recorda um romance; lá, no sítio onde se arrumam os corpos e veneram as roupas, não há canto, nem palavras, nem espaços que evoquem esses sentimentos; estes só não são perdidos para sempre porque a alma armazena em si os afetos como frasco que retém as essências mais caras.

Depois, depois não perguntem por que choram os velhos. E os filhos, onde estão neste tempo que já não é o deles? Estão na indiferença perante o espetáculo da degradação física da mãe e têm a coragem de deixar o pai sozinho, perdido em pensamentos na solidão.

Já repararam como metem de comer à vossa mãe que mastiga e engole devagar? Depressa porque há mais gente para meter na boca trémula a papa espessa que serve de caldo e presigo? Voltei a levantar os olhos para a Falperra que mostra, aqui e mais além, o verde novo dos rebentos dos eucaliptos ardidos.

A natureza responde com renascimento. Mas o homem que já correra e saltara, rira e se exultara, não mostra indícios de reverdecer, antes parece mais murcho agora que o vejo fora das sombras que o sol estampa no passeio.

Porque não vai para perto de sua mulher, perguntei-lhe um dia. Respondeu-me assim: estou a pagar pela minha mulher e não tenho posses para dois. Isso é desculpa, retorqui-lhe. Também, (pausa) mas já foi a um asilo? Pois vá e repare no olhar daqueles velhos! São olhos mortos, de mortos vivos. E os filhos, voltei a apelar.

Os filhos não são nossos, só passam por nós, como me disseram um dia. Havia tristeza naquela voz resignada. Foi aquele velho que arrasta os pés na calçada da rua e leva nas mãos trémulas um saquito de plástico que impôs ao cronista esta reflexão: mais vale morrer vivendo do que viver morrendo.


Autor: Paulo Fafe
DM

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8 outubro 2018