1. Passaram 500 anos sobre a afixação das 95 teses, na véspera (31 de Outubro) de Todos os Santos de 1517, sob o pórtico da Igreja de Vitemberga (Alemanha), pelo monge agostinho Martinho Lutero (1483-1546), rebelando-se contra o comércio das indulgências.
Desde há mais de um ano, na Alemanha, comemora-se o “Ano de Lutero”, que é também o V centenário da Reforma, que se consumaria com a bula Exsurge Domine (1520), do papa Leão X, que reconhecia como válidas 54 das teses, mas exigindo, sob excomunhão, a retractação de 41, e de "outros erros". A consumação da Reforma verificar-se-ia quando Lutero, comparecendo na Dieta de Worms (“perante o Império e o Imperador”), termina assim o seu discurso: "Se me não refutardes através do testemunho das Escrituras ou mediante razões evidentes – pois não creio nem nos papas nem nos concílios, pois já muitas vezes se equivocaram e se contradisseram –, estou acorrentado aos textos da Escritura, e a minha consciência é cativa da Palavra de Deus. Não posso retractar-me nem me retractarei de nada, porque não é justo nem honesto agir contra a própria consciência. Que Deus me ajude. Amém". A ruptura com a Igreja Católica Romana é consumada.
2. Lutero foi professor na Faculdade de Teologia de Vitemberga, mas era alguém atormentado pelas tentações; um dia, lendo a Carta de S. Paulo aos Romanos, foi tocado por uma passagem que confirmou a sua interpretação de Santo Agostinho, e mudou a sua vida: "Consideramos, com efeito, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da Lei" (Rm 3, 28). A justiça divina, que Lutero julgava punitiva, é afinal dom gratuito, sendo a justificação pela graça, mediante a fé, o núcleo do mistério cristão.
O Papa Francisco, em 31 de Outubro de 2016, em viagem apostólica, na sua “Oração Ecuménica na Catedral Luterana de Lund” (Suécia), participando assim no início dessas celebrações, afirmou: "A experiência espiritual de Martinho Lutero interpela-nos, lembrando-nos que nada podemos fazer sem Deus. ‘Como posso ter um Deus misericordioso?’ Esta é a pergunta que constantemente atormentava Lutero. (…). Como é sabido, Lutero descobriu este Deus misericordioso na Boa Nova de Jesus Cristo encarnado, morto e ressuscitado. Com o conceito “só por graça divina”, recorda-nos que Deus tem sempre a iniciativa e que precede qualquer resposta humana".
3. A obra de Lutero, de índole mais panfletária que analítica, mais polemista que sintética, é imensa (a edição de Erlangen abrange 67 volumes em alemão, 33 em latim e 19 de correspondência). Ela insere-se no movimento de retorno às origens, que caracterizou as manifestações culturais do Renascimento; todavia, os escritos dos reformadores do tempo, sobre a sociedade e o poder, assentavam em pressupostos de ordem teológica. Os escritos de Savonarola, de Erasmo, de Moro ou Campanella, antecipavam já as ideias impulsionadoras da Reforma; contudo, o movimento humanista estava circunscrito a um círculo de intelectuais, enquanto as ideias de Lutero penetraram fundo nas massas populares.
4. No domínio religioso, Lutero contestava sobretudo uma certa tradição que, ao longo dos séculos, perturbava a transparência das verdades evangélicas. Esse retorno às origens significava recusa dessa tradição, libertando-a de elementos contingentes e de sedimentos supérfluos. Antes da Reforma se consumar, Lutero dedicou-se à tradução da Bíblia, um dos primeiros escritos religiosos em língua alemã – aliás, o padrão e obra-prima do alemão moderno. Lutero dava primazia à Bíblia e pretendia desembaraçar a fé dos seus envolvimentos adventícios. Francisco, no encontro ecuménico em Lund, reconheceu que "a Reforma contribuiu para dar maior centralidade, na vida da Igreja, à Sagrada Escritura".
5. Se a teoria do “livre exame” significa, por um lado, iniciativa e capacidade do sujeito, não deixa, por outro, de inculcar um certo tipo de abandono à iniciativa divina: "Não há lugar – diz Lutero – em que Jesus Cristo fale de modo mais claro e inequívoco às pessoas e à Igreja que na Escritura. Esta não precisa de intérprete, de quem lhe dê voz e sentido. A Escritura interpreta-se a si mesma".
Relegando o contributo de filósofos, de Aristóteles a S. Tomás, a quem chamava de sofistas, pois indagavam racionalmente os problemas da fé, sustenta, na senda de Ockham, que é à fé e ao conteúdo da revelação positiva que pertence a preeminência; por isso, afirmou, "eu sou um discípulo da escola de Ockham". Enquanto Erasmo procurava preservar a liberdade humana, no De libero arbítrio, Lutero contrapõe o De servo arbitrio (1525) – título aliás sugestivo da sua posição: essa “servidão” traduz o ser livre do cristão, acentuando o papel do poder divino, negando o livre arbítrio. O que o homem possui, não o é por direito próprio, mas por dádiva divina. Nesta sequência, convirá examinar a sua concepção da natureza humana e as suas ideias políticas (o que faremos no próximo texto).
[O autor não escreve segundo o denominado acordo ortográfico]
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
Reforma Luterana (1)
DM
24 dezembro 2017