twitter

Reflexões a respeito da votação sobre a eutanásia

1. As considerações que se fizeram a respeito da eutanásia podiam ser divididas em duas categorias: as que procuraram abordar o assunto com objectividade e as que apenas o queriam politizar à sua maneira. E estas foram a maioria.

Ouvi análises muito esclarecedoras do ponto de vista médico e do ponto de vista jurídico; mas, notei que faltaram neste debate outros pontos de vista que são importantes: tratando-se fundamentalmente de uma decisão pessoal ética (e eventualmente também religiosa, porque a maioria tem opções religiosas), faltou uma análise ética, filosófica e teológica e também uma análise mais aprofundada do ponto da neurologia, da psiquiatria e da psicologia. É que, numa questão definitiva de vida ou de morte como é esta, tudo deve ser feito e ponderado.

Do ponto de vista dos que pretenderam politizar a decisão sobre a eutanásia, abundou a paixão ideológica, mas faltou a preocupação humanista e a objectividade científica. Um assunto tão decisivo como é a questão da vida ou da morte e do sentido da morte (para a cultura cristã) não pode ser tratado com a ligeireza e paixão de quem discutefutebol naqueles programas radicais que passam diariamente na televisão para anestesiar os ouvintes.

2. Este clima de paixão ideológica, que já há muitos anos se não via, mostrou que estamos a atravessar uma fase social que se assemelha a uma espécie de feira de opiniões sobre tudo e sobre nada e onde cada um se serve sem critério e apenas por clubismo. Isto presta-se a que grupos de teor mais fanático falem mais alto, polarizem mais o vazio das atenções e arrebanhem adeptos, que vão atrás de quem melhor os sabe enganar, sob a capa de facilidades de vida ou de modernidade, seja lá o que isso for para eles.

Não sei se a cultura da internet facilita este clima de acefalia crítica. Não que eu esteja contra o ambiente livre e plural da internet, com os mais variados assuntos: ela é uma riqueza dos tempos de hoje. O que estou contra é que se não ensine a gerir a informação, a aprofundá-la e validá-la porque nem tudo o que reluz é ouro, a construir projectos pessoais inovadores ao serviço do homem, em vez de uma cultura de charlatanismo acrítico e exaltado.

3. Também não se pode ignorar que a eutanásia, um tema fracturante que a Esquerda tanto gosta como se estivesse só contra o mundo, representa uma agressão à cultura secular do povo. O povo vivia em pânico durante esta discussão porque tem uma cultura que valoriza acima de tudo a vida e o sentido da morte e acredita na vida para além da vida. Essa é a sua identidade cultural secular. Uma cultura em que a morte tem um significado muito transcendente.

Não se pode esquecer que negar a transcendência do sentido da morte é uma agressão à cultura cristã. E, aqui, vale a pena lembrar aos proponentes desta discussão que há mais horizontes para além do horizonte do materialismo dialéctico e ideológico e que é estranho ver gente sentir-se feliz agredindo os outros. Valha-nos Freud, que talvez possa dar uma ajuda nesta situação…

4. A Esquerda reagiu com veemência e de uma forma intransigente à derrota do seu projecto no Parlamento, prometendo que há-de voltar a esta votação… até parece que alguém os expropriou de uma verdade que é exclusivamente sua. Figuras radicais como Isabel Moreira e outras… fizeram-me lembrar vultos de seitas religiosas radicais de há uns séculos atrás.

É preocupante este fenómeno de radicalização que se está a viver na sociedade. Há uma cultura de conflito. Falta serenidade de reflexão, falta motivação para se criarem projectos construtivos de vida; em vez disso, discute-se, agride-se, desfaz-se muito do que tem raízes seculares. O nosso tempo não está a gerar líderes, filósofos sociais e homens de ciência que assumam os desejos do povo e os façam avançar construtivamente.

5. E isto leva-nos a uma outra preocupação que esta crise fez emergir: uma liderança anémica do espaço político mais moderado. E, dentro deste espaço, um partido que precisa de repensar a sua actuação. Admito que haja seriedade e boa vontade, mas “só boa vontade não chega”, como diria Bruno Bethelleim a respeito da psicanálise. É preciso mais. É preciso conhecer e respeitar a identidade cultural deste povo que construiu Portugal.

Porque a cultura de um povo é a sua alma. Um líder pode ter a sua opinião pessoal, mas desde que assumiu ser líder de um grupo tem de assumir como sua a cultura desse grupo. Pode ter a opinião que entender, mas como líder o que contava aqui era a cultura do grupo sobre a eutanásia. Se um líder não se identifica com o grupo, também o grupo se não pode identificar com ele.


Autor: M. Ribeiro Fernandes
DM

DM

10 junho 2018