Sem pretender escamotear a importância de um debate sereno sobre a questão da eutanásia e, consequentemente, sem menosprezar o repto lançado pela Igreja Católica, no âmbito da iniciativa em curso da “Semana da Vida 2018” para que se discuta este tema e se reflicta sobre o sentido da vida e da morte, tenho para mim que tal disposição não pode sobrepor-se à premência de o nosso país assegurar aos seus cidadãos uma eficaz rede de cuidados paliativos.
E isto porque, antes de se aferir se o sofrimento de alguém que padece de doença grave e incurável é intolerável, deve procurar garantir-se a todos os doentes um adequado tratamento para o seu sofrimento já que a Constituição e a lei impõem ao Estado a obrigação de dar aos cidadãos tal garantia no âmbito do direito à saúde (cuidados paliativos incluídos).
E também porque, mesmo sabendo que padecem de doenças incuráveis, se os doentes tiverem um tratamento adequado, os pedidos para a realização duma hipotética eutanásia tenderão a ser marginais.
É neste sentido, aliás, que vai o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, cujo valor e autoridade científica ninguém de boa-fé pode pôr em causa.
Mas, infelizmente, doze anos depois da criação da rede nacional de cuidados paliativos e cerca de seis anos após a promulgação da Lei de Bases de Cuidados Paliativos, a conclusão que os factos evidenciam é desanimadora.
Na verdade, nesta matéria que a OMS considera uma “prioridade da política da saúde” e que o Conselho da Europa entende ser “um direito fundamental do ser humano” estamos imensamente limitados, como se pode concluir dos relatórios concordes elaborados por respeitáveis instituições oficiais como o Observatório Português dos Cuidados Paliativos e a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.
Para se ter uma ideia real dessa limitação, basta citar algumas das conclusões dos relatórios dessas duas entidades referentes à situação existente em Portugal no final de 2016.
O panorama era este: havia 359 camas para uma média total estimada de 80 mil doentes, o que equivale a cerca de um terço do desejável; há falta de camas nos hospitais de agudos e as que existem estão apenas distribuídas por 5 distritos; para internamentos prolongados, só existem camas em seis distritos;
o número de Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos (ECSCP) é demasiado baixo (estima-se que a taxa de cobertura nacional é de apenas 21%), o que contraria a urgência de tirar as pessoas dos hospitais, onde se continua a morrer predominantemente;
por região, distrito ou tipologia de recurso, as taxas de cobertura do território são muito assimétricas (por exemplo, nos Açores, Aveiro, Leiria e Viana do Castelo não havia uma cama de cuidados paliativos, enquanto Bragança tinha uma cobertura de 140% acima do necessário, tal como Coimbra;
o horário de funcionamento das equipas de cuidados paliativos não garante a continuidade dos cuidados, com algumas a funcionar 4 horas/dia; número demasiado baixo de doentes referenciados (menos de 10% do total) e, consequentemente, com acessibilidade a tais cuidados; cerca de 20% dos doentes referenciados não são admitidos nos serviços, pressupondo-se que falecem antes de a eles acederem; ausência de referenciação em ECSCP;
tempo de sobrevivência baixo pós-admissão nos serviços – doentes admitidos muito próximo ou já em fase de morte iminente; e baixo número de profissionais em todos os grupos, relativamente ao necessário.
Quer tudo isto significar que Portugal está muito atrasado em matéria de cuidados paliativos e, por conseguinte, longe dos objectivos definidos nos vários planos estratégicos para o desenvolvimento desses serviços que têm vindo a ser sucessivamente aprovados.
Neste contexto, pretender resolver os múltiplos problemas dos doentes que se encontram em situação de inadmissível sofrimento na fase mais avançada da doença e no final da vida com recurso à legalização da eutanásia será colocar os mais vulneráveis sobre uma fortíssima pressão social, criando-lhes a sensação de representarem um fardo para a família e levando-os, como já alguém disse, a “desistir de viver”. E, por outro lado, contribuirá para desincentivar o investimento prioritário do Estado nos serviços de Cuidados Paliativos.
Por isso é que o desafio maior que aqui deixo é outro: vamos discutir primeiro a forma de, rápida e integralmente, dar cumprimento aos planos estratégicos para o desenvolvimento dos cuidados paliativos, vamos debater mais o uso da morfina e de opióides no tratamento de dores e dos doentes terminais; e vamos tratar de conseguir que em Portugal se morra melhor e preferencialmente se morra em casa, rodeado da família e de amigos e com o mínimo sofrimento possível.
E então veremos – disso estou convencido – que o problema da eutanásia não tem a importância que muitos lhe querem conferir e que a reflexão profunda em torno do mesmo só logrará produzir conclusões socialmente justas e eticamente sustentáveis se efectuada em condições de autêntica liberdade, de igualdade de percepção e de respeito pela vida, pela dignidade humana e pela saúde e bem estar da comunidade nacional.
Autor: António Brochado Pedras