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Racismo de trazer por casa

Por estes dias, a propósito da provável aposta num jovem cabo-verdiano, dissertava um comentador pós-graduado em transferências futebolísticas sobre as qualidades desse reforço oriundo “do futebol selvagem de rua”. Certamente, insistia o colega de painel, uma promessa para ser “lapidada” pela academia do clube lisboeta. O racismo não se mede apenas pelo número de votos na extrema de direita. Também está associado a um conjunto de comportamentos e discursos do quotidiano, ora manifestamente censuráveis, ora aparentemente anódinos. Não faço ideia se os comentadores em questão são efectivamente racistas… Duvido é que tivessem usado as mesmas expressões se o atleta viesse dos arredores de Paris ou Londres. 

Dezoito agentes da PSP da esquadra de Alfragide são acusados dos crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física, agravados pelos crimes de ódio e discriminação racial. O caso remonta a 5 de Fevereiro de 2015, quando seis jovens de origem cabo-verdiana, residentes no bairro da Cova da Moura, terão sido alvos de violência policial. Cabe agora à Justiça determinar, com imparcialidade, a verdade dos factos. Deve absolver ou condenar, sem ter em conta a pressão mediática e as ondas de indignação popular que, de um lado e doutro, já escolheram culpados/inocentes, sem ter sequer um conhecimento aprofundado do caso. As relações interétnicas continuam a ser um nó górdio das nossas sociedades. 

Por muito que queiramos acreditar num “modo português de estar no mundo”, pretensamente enraizado numa colonização mais humanista, o racismo continua bem patente em largas franjas da população. E não se restringe às classes populares. Manifesta-se apenas de forma diferente. “Quanto mais sofisticado e jovem o estrato, mais a argumentação se veste na linguagem para justificar a exclusão social, ou seja, mais a norma anti-racista constrange o discurso e o encaminha para o chamado novo racismo ou racismo subtil” (Rosário et al., 2011, Discursos do racismo em Portugal). E quando se trata da população cigana, o discurso xenófobo nem sequer se dá ao trabalho de tomar tais precauções.

Embora a cobertura mediática sobre as minorias étnicas tenha evoluído um pouco no decurso dos últimos anos, continua a veicular um conjunto de estereótipos (Ferín et al, 2008, Media, imigração e minorias étnicas) bem arreigados na opinião pública, como evidenciam, entre outros, os estudos de Rosa Cabecinhas, João Marques ou Ricardo Carvalheiro. Nessa complexa teias de relações sociais, certas profissões estão mais expostas do que outras por encarnarem a colectividade, como acontece com as forças de segurança, assistentes sociais, médicos e enfermeiros, psicólogos e outras actividades de serviço público. Independentemente do profissionalismo dos seus membros, as interacções com populações estigmatizadas tornam-se mais complexas, pelos simples facto de ocorrerem num contexto de racismo latente.

Não falta quem tenha certezas sobre o que se passou na esquadra de Alfragide. A única coisa que eu sei é que – desde que seja julgado com equidade –, por mais complexo que seja o caso, é bem mais fácil de resolver do que o racismo de trazer por casa que ainda grassa neste cantinho à beira-mar plantado. E nisso, somos (quase) todos coniventes. Ora por participação activa, ora por silêncio ensurdecedor.


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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15 julho 2017