Porque venho de uma família numerosa, habituei-me de muito novo a conviver com a morte (de avós, pais, tios, padrinhos, madrinhas, cunhados...); com essa inevitabilidade que é a transitoriedade da vida na quebra de laços, afetos, relações e cumplicidades.
E recordo, muito criança ainda, os gritos de dor que acompanhavam sempre os velórios em casa dos falecidos e, sobretudo, o momento inexorável da partida do ente querido da residência familiar para a eterna morada; como igualmente relembro os longos, silenciosos e plangentes cortejos fúnebres, a pé por veredas e azinhagas, sinalizados pelo dobrar pesado e dolente que os sinos da torre cimeira da igreja punham na paisagem soturna de cômoros e vales.
Até a dimensão da morte, apesar da Fé que a todos movia na vida que, para além dela nos espera, outro sentido e verdade tinha; porque, queiramos ou não, perder um ente querido, é sempre um pedaço de nós próprios que se perde e sabendo que o que deles nos fica são as recordações, único lenitivo para atenuar a saudade de não o ter presente.
Amanhã é o dia maior da saudade e de ver e sentir, frente à realidade e silêncio dos túmulos, como a vida é breve e a morte inevitável; mormente de sofrer a ausência, aqui dos avós e pais, ali de um irmão, de um cônjuge, de um tio e, além, de um amigo de um vizinho ou simplesmente de um conhecido.
E interiormente, como quem reza, pensarmos:
- Ainda há dias cá estava, ainda no ano passado cá esteve.
E mais dolorosamente:
- Morreu tão novo ainda, tinha tanta vida pela frente!
Amanhã é o dia maior da saudade; e de nos lembrarmos que o efémero peregrinar pelo mundo nos deixa, apenas, esta dimensão real, cruel, crua e universal de que somos pó e em pó nos havemos de tornar; como disse Deus a Adão, após o pecado original que o afastou do paraíso: memento humo guia pulvis es et in pulverem revertteris (lembra-te, homem, que és pó e em pó te reverterás).
Mas, ir aos cemitérios somente uma vez por ano não é seguramente a melhor forma de celebrar os nossos mortos; porque, se os não lembrarmos todos os dias nas pequenas como nas grandes ocasiões, nas doces como nas amargas recordações, todas as marcas e cicatrizes humanas, materiais e espirituais, maus netos, maus filhos, maus cônjuges, maus irmãos, maus sobrinhos... maus amigos somos.
Todavia, no mundo hostil em que vivemos, onde o materialismo, o relativismo, o hedonismo e o ateísmo imperam vorazes e implacáveis, as pessoas não têm ou não querem ter tempo nem modo para lembrar a efemeridade da vida; e, sobretudo, com a pressa de viver, de chegar primeiro e a todos os lados, deixam facilmente para trás o essencial do que lhes é exigido como seres gregários e familiares que são. E, assim, visitar os nossos mortos com regularidade, como uma obrigação afetiva e efetiva, não entra no uso desta estranha forma de vida que consome e domina a vida moderna; e, se há muito tempo, as lágrimas já secaram e nos esquecemos facilmente do passado, o impulso da aproximação e da afetividade deixa de ter sentido para corações assim empedernidos.
Amanhã é o dia maior da saudade; e, então, que seja o momento de sentirmos, frente ao silêncio e à realidade, nua e crua, dos túmulos que, mais tarde ou mais cedo, sempre mais cedo do que mais tarde, para aqui viremos fazer companhia eterna aos nossos mortos e como eles mortos seremos; e de pensarmos que voltamos ao pó a juntar ao pó que eles já são, como rezava um epitáfio que, em tempos, vi inscrito num túmulo:
Ó tu mortal que me vês
Repara bem como estou!
Eu já fui o que tu és
E tu serás o que eu sou!
E, sobretudo, momento bom para acreditarmos que também os nossos filhos e netos, ao menos uma vez no ano nos venerarão publicamente com flores ou sem flores, com mausoléu ou sem mausoléu, com epitáfio ou sem epitáfio, compungidamente ou não; mas, seguramente, com a saudade que é a forma óbvia de recordar partidas e ausências.
Assim, que o dia de amanhã desperte em nós, ainda pobres mortais, a certeza de que para quem parte o mais importante é a bagagem que transporta e para quem fica são as obras que deixa e por ele falarão para sempre.
Então, até de hoje a oito.
Autor: Dinis Salgado
Questões de eternidade

DM
31 outubro 2018