As três linhas de um título do Jornal de Notíciasde terça-feira passada sintetizavam o essencial de uma notícia vulgar: “Acidente com três carros na A1 mata dois trabalhadores em Ovar”. Junto do texto principal, uma breve nota reconhecia que o ocorrido “carregava a negro os números de vítimas registadas nas estradas portuguesas”. O jornal recordava, a seguir, a calamitosa contabilidade que indicava que, nos primeiros sete meses do ano, tinham morrido nas estradas nacionais 257 pessoas e que os feridos graves tinham aumentado em relação ao mesmo período do ano anterior. Os números tinham sido oficialmente divulgados poucos dias antes e, como de costume, as estatísticas da sinistralidade rodoviária não se incumbem de indicar o que aconteceu aos feridos graves. Torna-se, por isso, óbvio que o número de mortes acaba sempre por ser superior ao que é divulgado. Os números são mais funestos do que parecem indicar.
Se quisesse, pouco depois, o Jornal de Notíciaspodia repetir-se. É que, na mesma terça-feira, outro acidente mortal “carregava a negro os números de vítimas registadas nas estradas portuguesas”: “Uma colisão entre dois pesados causou um morto na A1, em Santarém. Dois bombeiros ficaram feridos, um deles em estado grave, atropelados por uma viatura ligeira, enquanto respondiam à ocorrência”. A hora tardia em que sucedeu empurrou a publicação da notícia para a edição em papel de quinta-feira. Na sexta-feira, a última página do jornal “carregava a negro” mais uma vez, noticiando um morto e dois feridos num despiste e um atropelamento mortal. Também no dia anterior, um motociclista tinha morrido em resultado de uma colisão com um carro.
Não é necessário ser exaustivo para se poder afirmar que, se sucederem nas estradas, as mortes e os feridos graves suscitam, invariavelmente, a indiferença do país. Alguns jornais podem dedicar duas páginas aos riscos de extinção de uma espécie de artrópodes na Nova Zelândia, mas são incapazes de gastar quatro ou cinco linhas para noticiar as sucessões de mortes em acidentes de viação. Na imprensa, não há vez em que um colunista considere útil emitir uma opinião sobre o problema. Uma nação que se alvoroça com tantas questões menores não julga relevante mobilizar-se para exigir que se ponha termo a uma catástrofe, que se designou já, com razão, como uma guerra civil nas estradas portuguesas.
Foi também uma notícia vulgar, publicada no Jornal de Notícias, que justificou que, neste espaço, em 2010, tivesse publicado o texto intitulado “Nem Deus, nem o destino”. Nove anos depois, nada difere em relação ao que então escrevi: “A regularidade com que aparecem notícias deste género na imprensa acaba por suscitar uma indiferença, injustificável, perante os acidentes de viação, mesmo os que provocam mortos. Foi o destino, dirão uns. Foi Deus que quis, dirão outros. Nem todos os acidentes de viação são, evidentemente, evitáveis, mas há demasiadas causas de responsabilidade humana que poderiam não existir, fazendo, assim, com que não se registassem transferências de responsabilidades para o destino e para Deus”.
A tragédia rodoviária nacional tem aqui sido um tema constante. No início do ano, por exemplo, o texto “Os portugueses matam-se mais nas estradas” divulgava o testemunho de um jornalista espanhol do diário El Paísque decidira nunca mais vir a Portugal de automóvel porque “quando um português se põe ao volante é um energúmeno”. As 513 mortes indicadas no registo oficial da sinistralidade rodoviária de 2018 não o desmentiam. Não vivemos em sociedades isentas de riscos e de acidentes, mas uns e outros podem ser prevenidos, o que não sucederá se tudo continuar com vias rodoviárias mal desenhadas e mal construídas, com sinalizações das faixas de rodagem e de bermas que não existem ou não se vêem, com sinais de trânsito colocados mais a torto do que a direito, com passeios em falta, com obras que nunca acabam, com o modo incompetente e desleixado como tanta gente tantas vezes conduz e com os problemas causados por criaturas amáveis que se transformam em bestas quando postas ao volante de uma viatura – bestas egoístas e, por vezes, assassinas. Tudo continuará, enfim, na mesma se não mudar a apatia perante a sinistralidade rodoviária; se não houver uma percepção do quão urgente é que se faça o que se sabe que deve ser feito para diminuir a mortandade nas estradas.
Destaque
Uma nação que se alvoroça com tantas questões menores não julga relevante mobilizar-se para exigir que se ponha termo a uma catástrofe, que se designou já, com razão, como uma guerra civil nas estradas portuguesas.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes