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Que filhos!

Se os olhos chorassem o que chora a alma, qualquer rio não passava de um regato. Comprovei isto mesmo um dia destes; fui visitar um velho amigo, amigo de escola primária, daqueles com que na adolescência partilhamos o cigarro ao meio. Também desde aí partilhamos amizade, da verdadeira, daquela que não espera nada em troca, a não ser um abraço apertado e um desfilar recordações sem tempo nem limite. Está atualmente diminuído, física e mentalmente, ainda que por entre rasgos de memória se lembre de retalhos felizes que vivemos em comum. O tempo distante vem até ele por entre rasgões de memória, como gota em boca hiante. A distinção que se lhe erguia entre o passado e o presente, passou a ser tão diáfana que às vezes tudo se lhe mistura na mente. É viúvo. Tem três filhos que se negam a metê-lo num lar: “não arrumaremos o pai num armazém de velhos”. Ouvem-lhe as suas irrealidades com respeito como se o pai lhes estivesse a contar uma verdade. Eles sabem que aquilo que o pai lhes conta não passa de delírios de uma mente perturbada. Mas não se riem, nem o escutam com sorrisos escarninhos; fingem embarcam naquelas fantasias e eu observo-os com profundo respeito, mesmo quando a sua mente diminuída por uma senilidade evidente, consegue inventar histórias delirantes, como dizer que venceu Eddy Merckx na rampa da Penha. É a mente procurando no caos encontrar a harmonia. E os filhos, em vez de o desmentir, fingem acreditar neste e noutros desvios de construção lógica, numa verdade de sentido erróneo. E ao ver isto, não posso deixar de pensar naqueles que são metidos nos asilos, nos lares, abandonados nos hospitais, no meio de pessoas estranhas, andando ao sabor de usos e costumes, paladares e sabores que lhe são estranhos. Aquele meu amigo, se não lhe apetece comer agora, come mais logo. Vive livre na sua limitação mental, enquanto outros vivem presos na sua totalidade mental. Estava bem vestido, bem agasalhado, bem calçado, venerado de pés à cabeça. Como dantes, não estava asseado, estava esmaltado. Este meu amigo vive duma pequena reforma que sustenta os seus gastos porque geridos com parcimónia pela filha mais velha, mas fica-lhe algum para viver cá fora. Há outra vida para além da vida que tem. Os filhos deixam-lhe dinheiro para ele viver uma vida social. Fico-me a pensar como seria humano transformar a casa de cada um, no seu lar de terceira idade! Quanto dá a segurança social por cada idoso internado num lar ou num asilo? Então, por uma questão de equidade social, porque não dar o mesmo a estes filhos? Ter o pai ou a mãe em casa, em vez de os terem “armazenados” numa dessas instituições, não tem comparação possível, nem pode ser medido em termos de contabilidade de deve e haver. Sofro a tristeza dos internados ao ver desfilar nas suas conversas as lembranças do seu passado! É um filme que bobina e desbobina num enredo de saudades! E, nos silêncios da alma, quantas vezes chorados no travesseiro, sofrem as piores das dores, na impossibilidade de voltar ao passado; sabem e sentem que a água que passou não voltará a passar: jamais voltarão a ter o aconchego familiar que tiveram e que eu vi, tão bem expresso, em casa desse meu amigo de infância. Mas os filhos têm direito à sua vida. É verdade: mas podem ir visitá-los, levá-los para férias, convidá-los para festas familiares; sei que em muitos filhos a vontade é muito menor que a disponibilidade! Quando há vontade encontra-se sempre tempo, espaço e lugar para eles. As minhas lágrimas de gratidão vão para aqueles filhos; são de alegria por ver como o meu amigo do tempo do pião estava feliz, embora situado, de quando em vez, no passado. Estava feliz porque estava em sua casa. Ali era rei.
Autor: Paulo Fafe
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12 março 2018