Algumas, trazem no braço um aparelho – eu não sei como se chama –, que anota os resultados alcançados. E correm, correm com energia e satisfeitas com o sacrifício inegável das suas pernas em movimento acelerado. Tudo bem… Se perguntássemos para que andam nessas estafadelas, responder-nos-iam de vários modos. Alguma poderia confessar que é atleta e esse trajecto dominical faz parte dos seus treinos. Outra, diria que com a corrida se sente bem e fica, psicologicamente, mais forte. Por fim, uma terceira, confessaria que ela é necessária, na idade que tem, para sugar ao corpo algumas calorias ou gramas, pois, de contrário, a curva abdominal não perdoa.
Há já algum tempo, um velho amigo, bom cristão, que trabalha numa empresa com muita gente, foi convidado, da parte da tarde, para jantar num restaurante especialista num bife esplendoroso, com um ovo a cavalo, capaz de alegrar, como o vinho, o coração dos justos. Vários dos seus colegas já tinham dito que sim ao convite, pelo que também contava com a sua presença para animar o grupo. Era quarta-feira de Cinzas. O meu amigo declinou o desafio, dizendo que nesse dia não lhe era possível. O colega ficou triste, insistiu, embora sem êxito. E já quando se ia embora, cabisbaixo, lembrou-se de que o meu amigo, por ser católico, deveria ter recusado, por causa dessa estranha mania dos jejuns ou abstinências quaresmais. E, com a vivacidade que lhe era costumeira, voltou a entrar no gabinete onde ele trabalhava, soltando uma série de impropérios contra esse Deus tirano, que obrigava os seus adeptos a privar-se de um pitéu daqueles. Ou seja, tudo isso não passava de uma grande estupidez.
No dia seguinte, curiosamente, o autor do convite e mais três participantes no lauto banquete, não foram trabalhar. O meu amigo estranhou e procurou saber dos motivos. Responderam-lhe que tinham tido uma indisposição nocturna e ficaram de cama. A ausência repetiu-se na sexta-feira. O assunto parecia mais grave do que inicialmente supôs. E por ser um bom homem, depois do trabalho, decidiu visitar na sua própria casa o autor do convite que tinha recusado, pois era pessoa da sua intimidade. Atendeu-o a mulher, que lhe explicou que o marido apanhara uma intoxicação alimentar, da qual se ia refazendo com lentidão. Convidou-o a entrar no quarto, onde ele se encontrava ainda de cama.
Lívido, de olhos mal abertos, agradeceu-lhe a visita. E explodiu: “O teu Deus é um tirano! Castigou-me por não fazer jejum, abstinência, ou lá o que é isso...” O meu amigo explicou-lhe: “Deixa o meu Deus em paz. Culpa antes o ovo do bife, que devia estar em mau estado! Pelo menos, é a causa mais normal dessas intoxicações...” O doente concordou, voltou a agradecer-lhe a visita, embora sempre recalcitrando: “Não percebo essa história dos jejuns...”.
Com paciência, o meu amigo explicou-lhe que o tempo da Quaresma serve para recordar os padecimentos que Cristo, Deus encarnado, suportou por nós. “Devemos a amar a Deus sobre todas as coisas. Por isso, fazer um sacrificiozinho, de vez em quando, em sua memória, não é nada de estranho. Além disso, S. Paulo lembra-nos que “aqui não temos morada permanente”, pelo que é bom não nos agarrarmos às coisas desta vida terrena de modo exagerado, porque elas acabam com a nossa partida para a eternidade”.
Da cama, com voz cava, murmurou: “És capaz de ter razão, mas a única coisa de que eu tenho pena é que, amanhã, não vou participar na corrida dos 10.000 metros que a Câmara organizou. Faz-me tão bem!” E voltando-se para a mulher: “Traz, se fazes o favor, um “whiskyzinho” para eu ver o meu amigo beber... E para mim… “Água das Pedras”!
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva