A quarentena social que está a decorrer tão lentamente que parece estar parada, estando eu retido em casa, fez-me experimentar o que deve ser uma pessoa estar presa judicialmente no seu domicílio. Se não tem os inconvenientes de um estabelecimento prisional, tem algumas limitações de liberdade que em tudo se assemelham à prisão. Os espaços de minha casa, que até agora me pareciam grandes, tornaram-se pequenos, digo mesmo exíguos, tantas são as vezes que os percorro, fazendo disto as habituais caminhadas pelas ruas e avenidas de minha cidade. Olhando da janela vejo os montes do Sameiro e Bom Jesus a distâncias impossíveis, os montes lá mais ao longe mostrando-me limites e horizontes que não posso alcançar porque estou confinado a este apartamento que se abate sobre mim como um castigo e me esmaga como uma pena de morte. Eu sei racionalmente que tem de ser assim, uma vez que estão em jogo a saúde pública e o contágio com outras pessoas, quer as que eu possa apanhar, quer as que eu possa transmitir. Mas isso eu sei, mas não posso deixar de experimentar em mim as sensações de limitação de liberdade; liberdade para ir ao passeio, liberdade para cumprimentar de mão os amigos, liberdade para parar a conversar com aqueles que me interpelam na rua, liberdade que eu tanto invejo aos pássaros que vejo cruzar os limites da janela em reboadas sei lá para que destino, liberdade das pombas que debicam aqui e ali o sustento constante, liberdade para ir escolher a fruta ao mercado da rua, ir buscar o pão, e até liberdade para ir de igreja em igreja visitar o Senhor Jesus exposto nesta época de lausperene. Julgo que esta limitação de liberdade que me está a matar a alma tem, no preso domiciliário, menos custos de liberdade porque talvez no seu mais íntimo sentir, sabe que está a pagar a conta do seu comportamento desviante. A expiação é uma pequena ajuda para o peso da pena. Quando se paga uma dívida alivia-se a dor da pena. Antes de me enclausurar por dever social, fui espreitar a uma grande superfície o comportamento das pessoas nesta época de alarme social. Coloquei-me do lado de dentro primeiro e depois do lado de fora das caixas. Dentro havia uma lufa-lufa para apanhar os produtos que desejavam e, na pressa ou correria de encher até acucular os carrinhos, não havia tempo para conversas. Carrinho cheio e toca a ir para as filas de espera. As prateleiras estavam constantemente a ser repostas, mas chamada a atenção para o facto, respondia uma senhora de meia-idade: “é melhor prevenir que remediar”. Mas se a senhora levar em excesso pode faltar o necessário para outros. Resposta imediata: “cada um que se cuide”. Depois, já do lado de fora das caixas, a sofreguidão era ainda maior: no tapete rolante, as compras eram imensas, e os cuidados para que nada passasse para o cliente seguinte, era de olhos aflitos e mãos sôfregas sobraçando a pilha das compras, e, depois, com cartões de crédito nas mãos em riste como lança de guerreiro que defende o terreno conquistado. Os maridos guiavam os carrinhos e “ vê lá, abre a pestana, não deixes cair nada” eram ordens dadas aos pobres maridos que, com ar resignado, lá cumpriam a voz de comando das esfalfadas esposas. E parece que era assim em qualquer das superfícies comerciais onde houve observadores Se “As coisas mudam e nós vamos mudando com elas” como disse Ovídeo, então onde se encontra o caráter?
Autor: Paulo Fafe
Prisão domiciliária

DM
23 março 2020