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Praias em tempo de pandemia

Porque somos um povo de marinheiros, embora a maioria de água doce e mar da palha, os oceanos sempre puxaram pelos nossos brios e acometimentos, e esta idiossincrasia ou costela marinha não espanta porque inscrita está na nossa extensa zona costeira bem fincada ao Atlântico, razão e ventre das nossas Descobertas.

Vai daí, faça muito ou pouco sol, sopre a nortada ou o siroco, cheire ou não que tresande a maresia, é ver a romaria nacional em direção às praias, seja para esticar o canastro à canícula, seja para contemplar a imensidão salgada duma qualquer esplanada ou arriba à beira-mar plantadas; e foi, sem dúvida, esta atávica atração pelas salsas águas que primeiro esteve na empresa dos Descobrimentos, logo secundada pelo cheirinho às especiarias das Índias, mormente, pimenta, cravo, canela, ópio, gengibre e cânfora.

Pois bem, este insólito verão que se aproxima, apesar dos esforços do governo em doirar a pílula, pressente-se já como uma enorme dor de cabeça para quem não dispensa a ida a banhos e tem na praia o seu gozo maior; e, pela simplérrima razão de que, dados os constrangimentos pandémicos, os areais não chegam, como sói dizer-se, para meia missa e serão, assim, disputados palmo a palmo, toalha a toalha e por não ser possível à lei da murraça ou da bala.

Penso que a legislação fabricada a régua e esquadro nos gabinetes mandantes e aos banhistas imposta será, não passa de uma completa aberração, dado o lirismo e rigidez que a enforma na sua tecedura; e, sobretudo, a sua aplicação no terreno, ou seja nos areais, reveste-se de evidente obstacularidade, resultante, por exemplo, no cumprimento rigoroso do distanciamento social de dois ou mais metros entre veraneantes isolados e grupos coabitantes consentidos."

Ademais, o sistema semafórico - verde, amarelo, vermelho - de informação aplicado à disponibilidade territorial das praias, vai trocar as voltas à maioria dos banhistas, obrigados que são, deste jeito, a procurar o ovo no dito cujo da galinha; e, sobretudo, de Ceca para Meca se esforçando em busca de um milagrosos lugar ao sol, acabando por não pôr os butes no areal e, assim, perderem a paciência e a vontade de, no dia seguinte, arriscarem nova viagem, mas tendo de sair de casa ainda alta madrugada para o abicho do seu naco de areal onde estender a toalha, montar o para- vento e abrir o guarda-sol. ·

E, então, quando se diz que o aluguer de barracas, toldos ou palhinhas é só possível, de manhã para uns e de tarde para outros, tal solução nem ao diabo lembraria, pois quem aluga tal equipamento é para o dia todo, seja para dormir uma soneca ou puxar da lancheira , seja para deitar o bebé ou jogar uma suecada; e, obviamente, quem tem de esperar na fila pela vacatura benfazeja do toldo, barraca ou palhinha não vai, com certeza, arranjar pachorra para aguentar tamanha seca em troca de tão curto e passageiro gozo.

Agora, morro de curiosidade para apreciar os dribles à Ronaldo que muitos portugas vão aplicar aos vigilantes e zeladores das regras definidas; é que, dada a impulsividade do maralhal , bem como o seu badalado desenrascanço e chico-espertismo, vai ser uma enorme dor de cabeça para as forças de segurança terem de calcorrear, de pesadas botifarras e grossos fatos de trabalho, os areais atrás dos prevaricadores; e, então, como grande parte das nossas praias são bordejadas de dunas, falésias e arribas, instalada estará a luta do rato e doJ ato entre polícias e ladrões, salvo seja, ou já para não pensarmos na vigilância que têrrf>de fazer à escavação de túneis ou ao uso de paraquedas por parte de quem não tem garantido o acesso ar mar.

E, já agora, se a utilização de drones para transmissão de ordens, avisos e conselhos prevista está e for por diante, a meu ver, preferível seria que tais pássaros metálicos antes largassem dos amplos céus nuvens de gás lacrimogéneo ou malcheiroso que afastassem os amontoados ou os casalinhos pipilantes; ou, melhor ainda, que fossem substituídos na sua augusta e patriótica missão pelos vendedores de gelados, bolas de Berlim ou bolacha americana que todo o dia batem incansavelmente os areais de fio-a-pavio, fazendo prestimosos serviços de proximidade.

Todavia, como para a Ovid-19 o mais apetecido petisco são os velhos que, assim, têm morrido ingloriamente e em profusão, e também os que vão restando, dada a sua falta de fisico para exibição, já dificilmente descem aos areais, mais prático e útil seria, a bem da paz social entre banhistas e agentes de segurança e como necessário impulso à debilitada economia, abrir as praias sem restrições e permitir deste jeito que todo o povo delas se sirva à vontade; porque, quem sabe, talvez a Covid-19 também esteja a pensar ir de férias, após tamanha trabalheira internacional, assim concedendo uma folgazita de que o país tanto necessita e agradece, nestes meses de habitual e vicioso veraneio.

Então, até de hoje a oito.


Autor: Dinis Salgado
DM

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3 junho 2020