Mesmo se não é fácil identificar o seu autor, o lugar e o contexto em que surgiu, a expressão latina Per crucem ad lucem (“Pela cruz até à luz”) transporta-nos, de imediato, para obras e figuras relevantes: o livro de Bento XVI sobre o mistério pascal, com esse título; a expressiva obra polifónica de John Milne (compositor neoclássico americano ainda vivo); o célebre livro do historiador inglês Thomas William Allies (1813-1903), com esse nome, publicado em 1879; o lema episcopal de D. Eurico Dias Nogueira (1923-2014), arcebispo de Braga entre 1977 e 1999; e ainda o rico e vasto conjunto escultórico do Bom Jesus do Monte, no seu sentido ascendente.
A expressão em epígrafe sintetiza bem o mistério pascal, nos seus momentos de paixão, morte (crucem) e ressurreição (lucem), como o sugerem os evangelhos sinóticos, quando colocam o episódio da transfiguração logo a seguir ao primeiro anúncio da paixão, ou a própria pergunta de Jesus: “Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória?” (Lc 24, 26). Presta-se também a ser uma excelente síntese da nossa vida crente, em que a fé e a esperança cristãs nos dizem que a cruz (metáfora da vida, na sua dimensão sofrida) é caminho que conduz à luz (metáfora da vida, quando assertiva). A dureza da vida dá lugar à vitória, a escuridão da morte projeta “no reino da luz e da paz” (Prece da Oração dos Fiéis, II, Celebração das Exéquias). “Não há glória sem sofrimento” e mesmo “depois da tempestade vem a bonança” são os seus correspondentes, na linguagem popular.
A expressão em causa diz bem a relação que existe entre a Quaresma e a Páscoa (é uma das tónicas do livro do Papa emérito, acima referido). A ideia é sublinhada com o facto de uma das devoções mais difundidas da Quaresma, a Via Crucis (Caminho da Cruz/Via Sacra), dar lugar, em Tempo Pascal, à Via Lucis (Caminho da Luz). A primeira centra-se no processo da condenação e morte de Jesus; a segunda destina-se a celebrar a vida, pela meditação das narrativas pascais. De facto, “a ‘Via Lucis’ é a continuação e o vértice da ‘Via Crucis’” (R. Alberto – A. Mendonça, Via Lucis, ed. Salesianas, Porto, 2012, p. 6), razão pela qual também lhe chamam “Via-Sacra da Ressurreição”. A relação entre uma e outra é de paralelismo (em ambos os casos, são catorze as estações), de continuidade (à paixão e morte segue-se a ressurreição) e de causa/efeito ou consequência (a ressurreição é o efeito ou a consequência da cruz).
As mais comuns estações da Via Lucis, sinais de vida e indicadores de esperança, são as que agora propomos: a ressurreição de Jesus (Mt 28, 1-8), o sepulcro vazio (Jo 20, 1-10), a aparição do Ressuscitado a Maria Madalena (Jo 20, 11-18), Jesus caminha com os discípulos de Emaús (Lc 24, 13-27), Jesus manifesta-se ao partir do pão (Lc 24, 28-35), a aparição do Ressuscitado aos discípulos (Lc 24, 36-49), o dom do perdão (Jo 20, 19-23), Jesus confirma a fé de Tomé (Jo 20, 24-29), Jesus manifesta-se aos discípulos no lago de Tiberíades (Jo 21, 1-14), Jesus confia o primado a Pedro (Jo 21, 15-19), Jesus confia aos discípulos a missão universal (Mt 28, 16-20), a ascensão de Jesus (At 1, 3-11), a espera do Espírito (At 1, 12-14) e o envio do Espírito (At 2, 1-6).
Valorizar a Via Lucis é dar relevo à ressurreição: “através da prática de piedade da Via Lucis, os fiéis recordam o evento central da fé – a ressurreição de Cristo – e a condição de discípulos que, pelo batismo, sacramento pascal, passaram das trevas do pecado à luz da graça” (Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Diretório sobre a piedade popular..., nº 153). Por outras palavras, é afirmar que “o Mistério Pascal não se esgota na dor do Crucificado, mas completa-se plenamente na glória do Ressuscitado. (...) Os quarenta dias da dor quaresmal são resgatados pelos cinquenta dias da alegria pascal” (R. Alberto – A. Mendonça, o. c., p. 6).
Valorizar a Via Lucis é afirmar que o Cristianismo não se esgota na Sexta-Feira Santa (cruz), mas afirma-se na manhã gloriosa da Páscoa e na Primavera radiosa do Tempo Pascal (luz). É dar cumprimento e sentido à expressão que aqui apresentámos: Per crucem ad lucem.
Autor: P. João Alberto Correia